São Paulo, quarta-feira, 19 de novembro de 1997
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Biodiversidade como fonte de remédios

ISAIAS RAW

Em 1974, quando o dr. H. Mahler foi empossado como diretor da Organização Mundial da Saúde, convocou uma comissão de alto nível para examinar o papel da OMS. Fiz parte dessa comissão e ainda tenho gravadas suas orientações. Mahler, para meu choque, imaginava que o Primeiro Mundo usaria medicamentos cientificamente comprovados e de alta qualidade; o Terceiro Mundo colheria no quintal algumas ervas para curar suas enfermidades.
Hoje, paradoxalmente, no mundo inteiro, mesmo populações educadas imaginam ser possível optar pelos medicamentos "naturais". Governo e empresas multinacionais crêem que a Amazônia, com sua imensa biodiversidade, é fonte inesgotável de medicamentos (a Mata Atlântica tem o dobro das espécies da Amazônia).
O único medicamento descoberto no Brasil é o que corrige a hipertensão arterial. Ele resultou da observação, em laboratório, de que uma enzima do veneno da jararaca, adicionada ao sangue, produzia uma substância que baixava a pressão (bradicinina) e continha outra proteína que ampliava a ação da bradicinina. Essa proteína seria um mau medicamento, por ter de ser injetada e produzir efeitos transitórios.
Um laboratório inglês tomou a proteína do veneno como modelo e sintetizou um produto muito mais eficaz, que resistia à digestão -ou seja, podia ser tomado por via oral- e era muitas vezes mais barato. O medicamento vende milhões de dólares. Nós, que o importamos, ficamos com as jararacas.
A cultura popular descobriu que várias plantas eram capazes de combater sintomas. Ela é capaz de reconhecer febre ou dores, mas não diagnostica pancreatite, hepatite, leucemia ou meningite. Também não sabe se os seus remédios "naturais" curam doenças.
O extrato do ópio (elixir paregórico) reduz as contrações do intestino e do útero, combatendo dores de barriga e menstruais. Foi usado até há pouco tempo, já que, por conter ópio, criava dependência. Dado a uma criança com apendicite, no entanto, evitaria a dor, mas permitiria que o paciente morresse por um apêndice supurado.
O extrato de beladona vem sendo usado desde a Idade Média para combater espasmos do intestino e a dor da dismenorréia. A partir dele foi isolada a atropina; desta, sintetizaram-se mais de cem produtos de maior eficácia.
Quem ainda usa a tintura está lidando com um produto que contém uma dose variável de atropina e muitas substâncias que têm outras atividades, além de contaminantes da planta, que podem conter até inseticidas.
Há mais de um século investigou-se o extrato de um chorão. A partir dele, isolou-se o ácido salicílico, resultando na produção da aspirina -que era mais efetiva em forma pura, podia ser administrada em doses e custava um décimo do preço do extrato.
O problema é mais grave com os digitálicos. O extrato da planta (digitalis) foi introduzido há mais de 200 anos para diminuir edemas, aumentando o volume de urina. Foram necessários 140 anos para descobrir que ele, na realidade, corrigia a insuficiência de contração do coração.
Nesse meio tempo, o extrato de digitalis matou milhares de pessoas por intoxicação. Só com o isolamento da digitoxina foi possível produzir o produto puro e com sua concentração controlada, para tratar a insuficiência cardíaca evitando intoxicações.
Ninguém deve investir na "conversa da comadre" para tentar desenvolver um novo medicamento sem antes testá-lo cuidadosamente no laboratório e saber se realmente funciona. Só então se justifica o enorme investimento para isolar a substância e estabelecer sua estrutura química, visando obter um produto comprovado e patenteável.
Para chegar ao produto final, o investimento é de milhões. Ele exige competências que ainda teremos de desenvolver ou associação com grandes empresas (só a Glaxo-Wellcome e a Roche têm, cada uma, um orçamento anual de pesquisa equivalente a todo o orçamento de ciência do Brasil).
Hoje, com a chamada química combinatória, só a Glaxo-Wellcome tem a capacidade de sintetizar 50 mil novos compostos químicos por dia! Não são mais dependentes da biodiversidade e das histórias das comadres.
Quando se sabe onde e como o medicamento deve agir (caso do inibidor da enzima proteolítica do vírus da Aids), usam-se sistemas de computador para buscar drogas que se encaixam na enzima, bloqueando sua atividade. São utilizados para isso dados da estrutura dos cristais da enzima, conhecimento praticamente inexistente no país.
Temos de encontrar uma forma de desenvolver medicamentos sem nos preocupar em satisfazer um mercado de ignorantes (educados ou não) que acreditam nas soluções miraculosas dos extratos, cartilagens e benzeduras. Essa é a meta do laboratório que será implantado em Manaus com a cooperação do Instituto Butantan.

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