São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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O vestibular travou o gogó tucano; Charada; Poesia no Natal; Basta querer; Um novo tigre; A morte dos botocudos e o carijó do FMI; A pasta, o real, o dólar e a meia-sola; Voz da demagogia; EREMILDO, O IDIOTA

ELIO GASPARI

O vestibular travou o gogó tucano
Muito gogó e pouco suor os males do governo são. Mais uma vez, 2 milhões de jovens brasileiros são levados para o matadouro do vestibular sem que haja luz no fim do túnel para que acabe essa praga do processo pedagógico nacional.
Em março de 1995, o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, informou que pretendia instituir um exame federal para todas as escolas de segundo grau. As notas desse exame permitiriam aferir a qualidade do ensino e, no futuro, criar uma alternativa ao vestibular. Pensava em aplicar um protótipo do exame na rede de um grande Estado ainda naquele ano. Neca. Ficou para 1996. Neca.
Um mandarim do MEC disse que ele seria realizado neste ano, pois dependia da aprovação, pelo Congresso, da Lei de Diretrizes e Bases. (Falso. O exame só dependia da LDB para mudar o acesso às universidades. Não dependia para aferir as escolas nem para informar a um jovem com média 7 em matemática numa biboca e 4 na prova federal que seu futuro está comprometido. Esse aviso, recebido no primeiro ou no segundo ano, serviria para moderar as suas ambições ou para levá-lo a pressionar a biboca.)
O exame prometido para 1997 aconteceu em outubro passado, mas só em nove Estados, testando 660 mil jovens de 4.700 escolas. O exame geral ficou para 1998.
O ministro argumenta que uma prova apressada seria picaretagem, mas prometeu adiantado e está entregando atrasado. Isso decorre de dificuldades compreensíveis (contrapostas a promessas incompreensíveis) e da hostilidade dos reitores ao uso dos boletins federais como forma de acesso às suas faculdades.
A reação dos reitores baseia-se em cautela e preconceito. Temem que os alunos pobres de escolas ruins percam a possibilidade de entrar nas faculdades. Nesse raciocínio, por piores que sejam o vestibular e seu derivado doentio, o cursinho, o resultado final ainda seria mais democrático.
Há preconceito porque o exame federal poderia ser apenas um filtro para um outro tipo de seleção, menos massacrante, livre do cretinismo das pegadinhas nas respostas de múltipla escolha. Uma universidade pode filtrar os candidatos ao curso de medicina só aceitando quem tenha conseguido média 7 em química, física e matemática nos exames federais dos três anos do segundo ciclo. Com esse filtro, pode-se montar um sistema de seleção com provas mais inteligentes, arguições orais e até mesmo entrevistas. Pode-se fazer qualquer coisa.
O fato é que, se o exame federal começar a aferir os calouros do segundo ciclo no ano que vem, um processo sério só estará maduro ao final do ano 2000.

Charada
Frase ouvida no Alvorada e dita pelo seu inquilino:
- O Malan já aprendeu. O outro ainda não.

Poesia no Natal
Com a proximidade do Natal, chegou a hora de as pessoas pensarem nos enfeites externos de suas casas e edifícios. Trata-se de uma recente expressão de cultura das cidades brasileiras e é consequência do aparecimento das pequenas, simpáticas e baratas lâmpadas chinesas.
Produto de pura poesia, esse fenômeno surgiu discretamente em 1994. Os moradores de alguns apartamentos enfeitavam suas janelas para alegrar quem as via sem saber quem vivia atrás delas.
Passaram-se dois Natais, a manifestação expandiu-se ao gosto do freguês, manteve a poesia, mas escorregou para o exagero. Alguns enfeites deixaram os edifícios com cara de bijuteria de bicheiro. Árvores cobertas de lâmpadas acabaram parecendo assombrações.
Cada um se enfeita como quer, mas quem se enfeita com mais gosto fica mais bonito do que quem se enfeita com muita coisa.

Basta querer
A empresa alemã Daimler-Benz está interessada em construir uma base de lançamento de satélites no Nordeste brasileiro.
Se o Ministério da Aeronáutica não encrencar, ela sai. Se encrencar, arrisca rolar por aí, como o laudo final do acidente da TAM no qual, há mais de um ano, morreram 99 pessoas sem que ele seja capaz de contar aos contribuintes o que houve.

Um novo tigre
Estima-se que o fundo de investimentos de George Soros, visto como oráculo da nova ordem econômica mundial, tenha perdido algo como US$ 2 bilhões dos US$ 10 bilhões de seu patrimônio. Uma pequena parte desse prejuízo saiu de aplicações feitas em papéis brasileiros.
O novo astro da banca mundial é Julian Robertson, dono do fundo Tiger, que apostou contra os tigres asiáticos e a favor da economia americana. Sua mesa deu um lucro de 40%.
Ficou em casa o investidor mais rico dos Estados Unidos, Warren Buffett. Ele prefere comprar ações de empresas americanas que produzem coisas que todo mundo consome, como lâminas de barbear ou refrigerantes.
Dono de um bom pedaço da Coca-Cola, deve estar feliz com os consumidores emergentes: os banqueiros que até o mês passado tomavam champanhe e agora estão bebendo refrigerante.

A morte dos botocudos e o carijó do FMI
A Editora da Universidade Federal de Santa Catarina publicou um livro precioso. É "Os Índios Xokleng - Memória Visual". Seu autor é o professor Sílvio Coelho dos Santos. Os xokleng são os populares botocudos, nômades que tinham por domínio uma área que ia do Paraná ao Rio Grande do Sul. O professor reuniu 166 fotografias desse povo, do início do século aos dias de hoje. Eles vivem na miséria depois que uma barragem lhes tirou as terras. Quando os brancos chegaram ao Sul, talvez tenham sido 3.000. Hoje são 1.200, vivendo em Ibirama (SC).
O livro é uma pancada. Mostra um processo de extermínio semelhante ao do Oeste americano. Não se tratou de expulsar índios na vastidão da Amazônia, mas de matá-los logo ali, no Brasil europeu. Os brancos pobres que contratavam pistoleiros (bugreiros) para desindiar a mata eram colonos, não predadores. Um desses assassinos conta como trabalhava: "O corpo é que nem bananeira, corta macio. Cortavam-se as orelhas, cada par tinha preço".
O professor Coelho dos Santos estuda os xokleng há 33 anos. Da tiragem de 3.000 exemplares de seu livro, separou 300 para as famílias de índios de Ibirama. Seu livro tem o mérito de convidar o Brasil branco e europeu, livre da chamada "herança escravocrata e ibérica", a refletir sobre a sociedade que há por aqui.
O pedaço do Brasil cuja história parece começar no século 19 com a chegada dos colonos europeus se esquece, por exemplo, de conviver com Essomericq, príncipe de uma terra desconhecida, levado para a Normandia em 1505 pelo navegador francês Gonneville. Lá viveu e morreu, deixando 14 filhos.
Supunha-se que a terra por onde andara Gonneville fosse a Austrália, mas provou-se que se tratava da ilha de Santa Catarina. Essomericq era uma corruptela de Açá-Mirim, o filho de um cacique carijó.
Como o FMI está na moda, vale lembrar que uma bisneta de Essomericq casou-se na família normanda de la Roziére. Assim, o economista Jacques de Larosiere, antecessor de Michel Camdessus na direção geral do Fundo e atual presidente do Banco Europeu para o Desenvolvimento, é parente de um desses índios que, como bugres, mendigam nas estradas. Se for descendente direto, será a glória da globalização: um carijó no FMI.
(Todas as informações aqui reunidas sobre o grande Essomericq -salvo o seu parentesco com o FMI- estão no livro "Vinte Luas", da professora Leyla Perrone-Moisés. São 172 páginas de erudição histórica, elegância de estilo e alegria de estudar. Um verdadeiro presente para a alma.)

A pasta, o real, o dólar e a meia-sola
Teresa Ter-Minassian, economista italiana e vice-diretora do Departamento do Hemisfério Ocidental do Fundo Monetário Internacional, é o novo personagem da política de Pindorama. Ela chefiou a missão de pesquisas do FMI que desceu em Brasília e cumpriu o ritual de sua espécie. Só é visível ao público nos minutos que leva para sair dos automóveis e entrar nos edifícios oficiais.
Ela já é um personagem da vida política argentina, onde dirige a missão que negocia um acordo com o governo. Lá tem fama de dura e deixou uma síntese do receituário do FMI: "Vocês tem que baixar o déficit e nós não nos metemos com a forma pela qual vão fazê-lo. Se quiserem reduzir despesas, reduzam. Se quiserem aumentar impostos, aumentem".
Dona Teresa é uma reencarnação da economista chilena Ana Maria Jul, que desempenhou funções semelhantes na década de 80. Ambas andavam por Brasília com pastas. A de Ter-Minassian é feminina, marron e de couro mole. A da Jul era preta e pesada, mais parecida com a de um vendedor de remédios.
A diferença entre o Brasil dos anos 80 de dona Ana Maria e o de FFHH de dona Teresa pode ser entendida num pequeno episódio ocorrido numa visita da chilena. Ela apareceu carregando um grande pacote e acreditou-se que os papéis confidenciais da economia nacional já não cabiam em sua pasta. Perguntaram-lhe que papéis eram aqueles e ela respondeu:
- Não são papéis. São sapatos. Eu descobri que no Brasil o preço dos consertos dos sapatos é mais barato que em Washington, então vou consertar alguns pares por aqui.
Teresa Ter-Minassian não terá a mesma sorte. (Ana Maria Jul continua no FMI, onde dirige a Divisão da América Central 2.)
O preço de uma meia-sola de couro em Nova York vai de US$ 15 a US$ 20. Em São Paulo custa entre R$ 20 e R$ 25.
Mistério. Se o aluguel e o salário do sapateiro são mais caros em Nova York do que em São Paulo, como é que a meia-sola brasileira pode custar mais? Como é possível que apesar da meia-sola nacional ser mais cara, o sapateiro daqui viva pior?
Como diria James Carville, o marqueteiro do presidente Clinton: "É o câmbio, idiota".
A colocação de uma meia-sola de sapato, como uma corrida de táxi ou um corte de cabelo é algo que não se comercializa com facilidade entre dois mercados. Os economistas chamam isso de bem não-comercializável. Um pacote fiscal ou uma dedetização podem ser outros exemplos. Quando essas coisas custam caro num país e barato noutro, é a moeda que está cara num e barata no outro. Não é o dólar que está barato. É o real que está caro.

Voz da demagogia
O companheiro José Israel Vargas, ministro da Ciência e Tecnologia, colocou na rede de correspondência eletrônica da comunidade científica oficial uma resposta ao que aqui se publicou a respeito da desfiguração que impôs à carreira dos pesquisadores brasileiros.
Tocado pela demagogia e ajudado pelo doutor Clóvis Carvalho, chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, o companheiro misturou 2.242 burocratas, ou "gestores de ciência e tecnologia" ao plano de carreira de 2.032 pesquisadores e cientistas que pediam para trabalhar em regime de dedicação exclusiva. Enfiou também 4.987 "tecnologistas", uma espécie em propagação, produzida pela genética de Brasília, na qual se juntam pessoas com nível superior envolvidas em pesquisas, com assistentes sociais e até mesmo jornalistas. O doutor Clóvis poderia informar quantas pernas tem um jornalista-tecnologista?
A dupla distribuiu uma gratificação que oscilará entre R$ 375 e R$ 1.025 por mês (e não R$ 560, como aqui se publicou). Fizeram isso contra a opinião do ministro Bresser Pereira, da reforma administrativa. Ele aceitava os tecnologistas, mas não concordava com a inclusão dos "gestores". O MCT contesta a crítica à extensão do benefício aos burocratas e informa:
- Na carreira de gestão estão não só os funcionários administrativos (...) como também os que cuidam da promoção da pesquisa através do financiamento de projetos e concessões de bolsas. São funções tão necessárias e especializadas como as dos "cientistas" (aspas dele).
Isso é uma tolice. Os burocratas não são "tão necessários" ao progresso da ciência quanto os pesquisadores. Há progresso científico sem burocratas, assim como há burocracia sem pesquisa, mas não se conhece avanço da ciência sem cientistas. Daí a especificidade da carreira.
O que o companheiro Israel e o doutor Clóvis não entendem (e não entendem porque sacaram contra o ervanário da Viúva, não contra o próprio bolso) é que cientista é cientista e gestor é gestor, assim como faxineiro é faxineiro. Os faxineiros, os gestores e os cientistas são todos necessários, mas um faz limpeza, outro gere e o terceiro pesquisa. Se todos ganham mal, que ganhem melhor. Quando se coloca um gestor no plano de carreira de um pesquisador, avacalha-se a carreira de cientista. Como tucano sabe onde põe o bico, os faxineiros ficaram de fora.

EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota. Acredita que FFHH pode tapar o buraco do déficit comprando a ekipekonômica pelo justo valor e vendendo-a por quanto ela acha que vale. Além de idiota, Eremildo é um homem limpo e malufista. Seu ídolo é o doutor Alfredo Savelli (aquele que diz que São Paulo está suja porque o povo é porco), secretário de assuntos regionais da granja Celso Pitta.
O idiota leu as seguintes declarações de Savelli, explicando como funcionará sua nova ouvidoria municipal de combate à corrupção.
- Não aceitaremos denúncias anônimas, por telefone ou acusações sem fundamento. Todo mundo corre riscos ao se expor, mas é preciso ser destemido.
- Quem fizer uma denúncia sem provas pode ser processado pela pessoa acusada.
O idiota acredita ter percebido uma essência secreta na proposta de Savelli. Está certo de que o malufismo, tendo feito as contas e verificado que é quase impossível botar os ladrões na cadeia, quer inverter o processo, encanando os honestos.

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