São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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O que os outros dizem que a gente diz...

ROBERTO CAMPOS

No debate norte-americano sobre a "nova economia" repete-se o que aconteceu com Francis Fukuyama em seu famoso artigo sobre "o fim da história". Foi criticado menos pelo que ele disse do que pelo que disseram que ele disse. Fukuyama não afirmou que o fim da história significasse o fim dos conflitos. Disse apenas que os conflitos seriam regionais e não mais entre as superpotências, imobilizadas pelo equilíbrio do terror nuclear. O fim da história significaria apenas que a humanidade havia, após milênios, descoberto um formato político-social com duas características: "universabilidade" e "sustentabilidade" -a liberal-democracia. Esta, se associada à economia de mercado, constituiria o "capitalismo democrático". Ideologias e sistemas alternativos continuariam a existir, mas desprovidos de "universabilidade" ou "sustentabilidade", como o comunismo, o islamismo e o nacionalismo. O fim da história significaria apenas que, por meio da evolução da razão hegeliana, a humanidade descobriu um formato sociopolítico capaz de trazer tranquilidade sistêmica. "Universalizável", por transcender nações e culturas, e "sustentável", por não se basear em coerção. Atribuíram-se a Fukuyama idéias muito mais ambiciosas e ingênuas, e o artigo ficou um pouco caricato. Talvez a crítica mais válida tenha sido a de Samuel Huntington, de que os modelos culturais nascidos no Ocidente encontram fortes resistências subterrâneas em outras civilizações, de modo que o movimento universal de "modernização" não deve ser confundido com "ocidentalização".
No atual debate americano sobre a "nova economia", o mesmo sucede. Como faz notar Stephen Shepard (artigo na "Business Week" de 17 de novembro de 97), os tradicionalistas atribuem aos entusiastas da "nova economia" pretensões mais audazes do que esses vocalizam. A "nova economia" não proclama a "morte da inflação" ou o "fim dos ciclos econômicos". Nem diz que o "boom" da Bolsa americana continuará indefinidamente, ou que o mercado ocidental não será afetado pela crise asiática. Afirma apenas que a economia moderna se tornou muito mais flexível para resistir a impactos inflacionários ou a crises recessivas, em função das profundas transformações trazidas (a) pela globalização competitiva dos mercados; (b) pela tecnologia da informação, que permite contínuos saltos de produtividade, e (c) pelo abrandamento sindical oriundo da desmassificação da indústria e da diversificação de serviços.
No caso norte-americano, a mudança é representada pelo fato de o ciclo econômico, anteriormente dominado principalmente pelas indústrias automobilística e de construção civil, depender hoje, em cerca de um terço, da tecnologia da informação. E, ao contrário dos demais setores, que sobem ou baixam de preço, a tendência de preços na tecnologia de informação é uniformemente de baixa. Abrem-se por isso novas perspectivas de crescimento não inflacionário.
Assim, o que dizem os "novos economistas" é que houve uma espécie de "flexibilização de fronteiras". Segundo os economistas convencionais, o limite de crescimento não inflacionário do PIB nos Estados Unidos seria em torno de 2,5% ao ano; hoje, esse limite teria aumentado para cerca de 3,5% ao ano. A taxa de desemprego capaz de evitar pressões altistas de custos salariais, anteriormente estimada em 6% da força de trabalho, teria baixado para cerca de 4,5%. Tudo isso em função da maior elasticidade da oferta de bens, resultante da dupla tendência de globalização (que aumenta a concorrência) e da tecnologia de informação (que eleva a produtividade). No cenário americano de hoje há coexistências que antes não se registravam -inflação em baixa e demanda aquecida de mão-de-obra. Esse fenômeno é menos perceptível na Europa, onde a organização sindical e a rigidez da regulamentação trabalhista reduzem a flexibilidade do mercado de trabalho: a inflação européia é baixa, mas é alto o desemprego.
Há outros fenômenos na evolução recente da economia mundial que são melhor explicados pela "nova economia" que pelos padrões tradicionais. Um deles é a desvinculação entre desvalorização cambial e inflação. Convencionalmente, as desvalorizações de câmbio, encarecendo importações e barateando exportações, tendem a exercer pressão inflacionária. Entretanto, na década dos 80, o dólar norte-americano se desvalorizou dramaticamente em relação ao iene e às moedas européias, sem repercussão inflacionária; o reverso aconteceu em anos recentes, nesta década, também sem impacto inflacionário, no Japão e na Europa.
A flexibilidade trazida pela "nova economia" não é obviamente distribuída uniformemente no mundo. Essa flexibilidade será tanto maior quanto mais intensa for a participação da tecnologia de informação na geração do produto (portanto maior o crescimento de produtividade). Nos países em desenvolvimento, as reações de oferta tendem a ser menos elásticas, portanto a vulnerabilidade à inflação é bastante maior. A pior combinação é quando a parcela de alta tecnologia no produto é baixa e rígida a regulamentação trabalhista. Esta, sob vários aspectos, a situação do Brasil.
O debate sobre a "nova economia" perdeu espaço na mídia pela explosão da crise asiática, cujos desdobramentos ainda estão em curso. Depois de serem beneficiados pela globalização financeira, que lhes permitiu financiar altas taxas de crescimento, sustentadas durante vários anos, os países do leste e sudeste da Ásia estão experimentando o fenômeno inverso -a volatilidade dos capitais. O mercado financeiro global premia e castiga em alta velocidade.
O que hoje se percebe -e crédito seja dado ao economista Paul Krugman por nos ter disso advertido com antecedência- é que os países asiáticos se debilitaram por excessiva expansão imobiliária ou sobreinvestimento em setores de prestígio (automóveis e microeletrônica), além de contarem com um sistema bancário pouco experiente na avaliação de risco e demasiado exposto a influências políticas.
Mas isso não nos deve levar a uma subestimação do desempenho asiático. Nunca na história humana tanta gente escapou das fronteiras da pobreza em tão pouco tempo. E nunca nações inteiras passaram de abjeta pobreza a relativa opulência no espaço de uma só geração. Restam como fatores positivos nos tigres e tigrelhos da Ásia seu salto industrial, sua alta taxa de poupança interna e seu respeitável esforço educacional.

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