São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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Ladeira 'Deus me livre' vira 'Graças a Deus'

FABIO SCHIVARTCHE
DO ENVIADO ESPECIAL A TRINDADE

A profissionalização da atividade turística em Trindade, mais do que elevar a qualidade de vida dos antigos pescadores, pôs fim ao perfil selvagem da região e transformou o pequeno vilarejo de difícil acesso e frequentado por bichos-grilos em um centro a caminho da urbanização, com pousadas, dezenas de bares e até lojas de souvenires.
A "Deus me livre", uma íngreme ladeira de terra de 800 metros que, na época das chuvas, era um tormento para qualquer carro que não fosse um jipe, mudou de nome. Hoje, depois que recebeu uma camada de concreto, chama-se "Graças a Deus".
Quem anda pelas ruas de terra de Trindade pode optar por restaurantes que servem comida simples e lojas que vendem camisetas com o nome das praias.
À noite, as rodinhas de violão com lendas de piratas -dizem que há cavernas que escondem ossos e fantásticos tesouros em algumas praias- que habitavam a região vão cedendo espaço a shows eletrificados de bandas "de fora" (de Parati e Ubatuba, principalmente).
E a benevolência dos moradores também não é mais a mesma. Há dez anos, os turistas ainda acampavam nos quintais ou mesmo se instalavam dentro das casas na "base da amizade". Hoje, pagam diárias que variam de R$ 30 a R$ 50 (quarto para um casal).
As pobres casas dos pescadores que acomodavam os bichos-grilos e seguidores, nas décadas de 70 e 80, hoje são aparelhadas pousadas, que dispõem até de energia elétrica (a luz chegou em 94).
Mais triste A transformação de Trindade divide opiniões. Para Jair da Anunciação Oliveira, 52, ex-presidente da associação dos moradores, o vilarejo ficou "mais triste".
"O caiçara evoluiu muito pouco e está ficando cada vez mais pobre. Eu, por exemplo, não tenho terra para dar aos meus cinco filhos, porque tive de vender parte do terreno para pagar os estudos deles."
Aderindo ao novo sistema, Oliveira, que já tem uma área para camping no terreno, começou a construir quatro apartamentos no quintal de sua casa para alugar para turistas.
Novo empresário Já o nativo Nivaldo do Carmo, 34, apelidado de Pelé e conhecido por ser um dos melhores pescadores de Trindade, deixou o saudosismo de lado e, hoje, é um dos mais bem-sucedidos homens de negócio de Trindade.
Sua pousada, de 12 quartos, lota nos finais de semana, o que lhe permitiu abandonar de vez o barco de alumínio com motor de popa, usado na pescaria. Mas Pelé precisou se adaptar à mudança.
"Quando eu vivia dos peixes do mar, eu voltava para casa todo fim de mês (ele passava 27 dias no mar) com a missão cumprida e o dinheiro do mês garantido. Agora, só faturo no fim-de-semana e nas férias e tenho de guardar para os meses de inverno."
"Trabalho como as formigas. Dou duro no verão para aproveitar no inverno", explica Pelé.
O desenvolvimento de Trindade acabou expulsando do mar quem ainda insistia na pesca. A luz espanta os peixes e os atravessadores da região tornam a atividade economicamente inviável -o quilo do peixe, que poderia ser vendido em Parati por R$ 2,5, é comprado pelos atravessadores por apenas R$ 0,30.
Consciente do preço a pagar pelo desenvolvimento, Pelé alerta para os perigos da poluição -agravada por veranistas que sujam as trilhas e praias.
"Se não tivermos infra-estrutura para suportar os turistas que lotam nossas praias, em breve tudo isso aqui vai acabar. E, se isso acontecer, vamos viver do quê?", questiona Pelé, sem esconder as saudades do tempo em que era possível ver a ardentia do mar (a fosforescência na superfície da água provocada pela presença de microorganismos). Hoje, só há ardentia quando acaba a luz no vilarejo.

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