São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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O REI DE LONDRES

MARK SANDERS
DA "DAZED AND CONFUSED"

Aos 23 anos de idade, Damien Hirst se lançou de supetão na arte britânica. Hoje, aos 32, seu nome já virou sinônimo de cultura contemporânea.
Tendo recentemente montado acampamento numa fazenda em algum lugar idílico em Devon (sul da Inglaterra), cercado por cabeças de gado, pubs, brinquedos de criança, porcos errantes e cinzeiros transbordantes, ele passa as horas tramando seu próximo lance. Mas para onde se vai quando tudo em que se põe a mão é imediatamente agarrado pela mídia para ser reembalado, revendido e redefinido?
A resposta, pelo menos para Damien, que lançou recentemente o livro "I Want to Spend the Rest of My Life Everywhere, With Everyone, One to One, Always, Forever, Now" (Eu Quero Passar o Resto da Minha Vida em Toda Parte, com Todo Mundo, Um a Um, Sempre, para Sempre, Agora), é penetrar o coração da própria mídia, fundindo duas das mais potentes linguagens visuais do século 20 -arte e publicidade.
*
Damien Hirst - A primeira pergunta é minha, OK?
Pergunta - Então vá lá.
Hirst - Do que você tem medo?
Pergunta - Pergunta difícil. Na verdade, de nada.
Hirst - Você sabe do que eu tenho medo?
Pergunta - Do quê?
Hirst - Em primeiro lugar, de que minha namorada me deixe; depois disso, da morte, e depois disso, de nada.
Pergunta - Consegui não pensar tanto assim na morte.
Hirst - Também tenho medo de descobrir que não vale a pena fazer arte, porque, se isso acontecesse, eu teria que parar. Mas, isto dito, não vou continuar por aí depois que a festa acabar. Quero dizer, o que acontece se você consegue tudo que jamais quis, e o que você consegue é tudo que todo mundo que você conhece jamais quis, e de repente você percebe que não o quer mais? De repente, começa a pensar: "O que é que eu quero na realidade?". Não o que eu penso que quero. Mas a energia para seguir em frente está sempre presente.
Pergunta - O que você quer?
Hirst - Quando penso nisso... toda minha compreensão da arte sempre se baseou em imagens. Passei mais tempo na biblioteca de arte e assistindo à TV do que em galerias de arte. Eu ia à biblioteca de arte e dizia a mim mesmo: "Eu queria ser como esses caras -eles, sim, é que entendem do riscado".
Sentado ali, olhando para reproduções de quadros, foi esse o mundo em que cresci. Mas, ao mesmo tempo, quando fiz escola de arte passei muito tempo falando sobre comerciais, conversas como: "Uau, você viu aquele anúncio da Coalite em que o cachorro beija o gato e depois o gato beija o rato? É fantástico!".
Eu não entendi isso na época, mas era dali que estava vindo a arte de verdade -o resto estava na biblioteca de arte, indo embora. Eu queria poder entender essa coisa -olhando em retrospectiva, meu trabalho sempre foi uma fusão das duas coisas.
Pergunta - Você já pensou em fazer um comercial?
Hirst - Alguns anos atrás assinei contrato com Tony Kaye. Fiz uma coisa chamada "Walking the Bird" (Passeando com o Pássaro).
Pergunta - Para quem?
Hirst - Para a TNT, Turner Network Television. Ela faz um monte de filmes estranhos, coisas que ninguém quer assistir. Precisava de um comercial para anunciar uma série que se chamaria "100% Weird", prevista para ir ao ar depois da meia-noite em toda a Europa.
Eu tinha que produzir um anúncio que captasse o espírito do título, "100% Weird" (100% Estranho). Tive milhões de idéias iniciais, mas depois pensei: "Nenhuma dessas vai funcionar, elas só são 90% estranhas. Onde vou encontrar o 100% estranho?".
Acabei tendo a idéia de mostrar um sujeito que eu havia visto alguns meses antes, descendo a rua em Whitechapel com um lenço no ombro e um "budgie" (pássaro colorido de origem australiana) em cima do lenço. O estranho era o lenço, em lugar de um poleiro de chumbo. Então, esse foi o ponto de partida para minha idéia. Eu o filmei, mostrei na TV e, imediatamente depois, ele foi proibido.
Pergunta - Por que foi proibido?
Hirst - Porque era estranho demais (ri). Dá pra acreditar nisso? Quem em sã consciência proibiria um comercial por ser estranho demais, quando o pedido original foi fazer um anúncio de "100% Weird"? Quem me daria 40 mil libras e depois daria para trás? Foi incrível.
Pergunta - Me conte o roteiro.
Hirst - Bem, a base da história é um sujeito que acorda de manhã, leva seu pássaro, Nigel, para dar uma volta até o açougue, compra uma linguiça e volta para casa, mas no caminho acontecem muitas coisas estranhas. Por exemplo, ele passa por um buraco no muro e vê três homens sem olhos jogando baralho sobre um barril. Eles fazem ruídos estranhos e um deles tem um par de olhos de vaca, que ele segura em frente ao rosto enquanto faz o som de alguém vomitando.
Depois de alguns segundos, ele joga os olhos para os outros dois, que ainda estão jogando baralho, e então uma vaca morta cai do teto e quebra o maldito pescoço. Aí uma mão abre e está cheia de larvas, numa tomada anamórfica.
No momento seguinte você salta para outro sujeito pescando numa lagoa, e ele tem uma pilha de larvas na mão, que está atirando na água. Você vê as larvas batendo na superfície, até o momento em que ele puxa a vara e encontra um globo ocular pendurado na linha.
A coisa toda é brilhante, insana. Mas não é só isso. A câmera passa para um apresentador que está falando para a câmera e você descobre que ele está sentado numa cadeira de cinco metros de altura, diante de uma mesa de seis metros, com as calças arriadas até o tornozelo. De repente a câmera faz um zoom sobre o ânus dele. É um close maciço, que preenche a tela inteira, do ânus dele -na verdade, do meu, já que não podíamos pagar um dublê-, que caga um feijão, com o acompanhamento do som de um peido.
O feijão cai pelo espaço vazio e aterrissa no centro de uma moldura de ouro, de onde voltamos ao sujeito do início, com seu pássaro colorido, entrando no açougue, que está cheio de garotas usando biquínis de carne.
O açougueiro, por trás do balcão, se inclina vagarosamente para a frente e oferece uma linguiça, que nosso sujeito aceita e depois volta para casa. Ah, esqueci de uma coisa. No meio de tudo isso, há uma tomada de uma mulher carregada de malas tentando subir a escada para chegar à porta de sua casa. Ela vai cambaleando e deixa cair as chaves. Quando se curva para apanhá-las, uma mão aparece por baixo de sua saia e chega lá primeiro (ri). É totalmente maluco. A coisa toda leva apenas 60 segundos.
Pergunta - (rindo) Soa fantástico. Por que foi rejeitado?
Hirst - Foi a agência com a qual eu trabalhava na época que fez dar errado. Eu disse a eles, na época, que não queríamos publicidade, que tudo estava certo e todo mundo estava contente com a edição final. Depois, a agência e o "The Independent" transformaram a história em notícia de primeira página: vacas mortas caindo do teto, globos oculares decepados, larvas, ânus expelindo feijão... dá para imaginar.
Então, quando Ted Turner, da TNT, ficou sabendo -ele é totalmente ecológico, casado com Jane Fonda e tem uma fazenda de búfalos no Texas-, ficou possesso. Dá para imaginar a cena: de manhã, ele está na banheira, lendo o noticiário internacional, provavelmente ao lado de Jane, e dá de cara com uma manchete tipo: "TNT, Choque, Horror, Loucura, Ted Ficou Maluco".
Então foi isso que desencadeou tudo. Fui convocado para uma reunião com o diretor de marketing aqui, que me disse: "Escute aqui, Damien, vou ter que falar com Ted sobre este comercial", e eu falei: "O que você vai dizer a ele?". Ele me chamou de lado e disse: "Não se preocupe, eu resolvo tudo. Já vi o comercial e acho que os jornais exageraram. Na realidade, é simples e direto. Vou lá e vou arriscar meu emprego por esse trabalho, porque acredito 100% nele". Nunca mais vi o sujeito. Ele foi demitido! (ri). Perdeu seu emprego.
Hoje em dia, não consigo cópias do filme nem para mim mesmo. A TNT ficou tão constrangida com a história toda que anda negando que teve qualquer coisa a ver com ela. Dá para imaginar isso? Meu primeiro trabalho, 40 mil libras. Espantoso.
Pergunta - Certa vez, no início dos anos 70, Chris Burden comprou 25 segundos de publicidade na TV e filmava a si mesmo, arrastando-se sobre vidro moído. Uma intervenção direta na mídia. Alguma vez você já pensou em comprar espaço publicitário ao atacado, dessa maneira?
Hirst - Conheço o trabalho, mas não sabia que ele o fazia na TV. Eu adoraria comprar espaço publicitário desse jeito, mas custa muito caro. Venho pensando em reunir toda uma série de falsos comerciais e colocá-los no ar, talvez na BBC, porque ela não tem anúncios enquanto tais. Possivelmente, até mesmo inseri-los entre comerciais de verdade. Vou tentar, com certeza. Eu quero, em especial, fazer um comercial para um líquido laxante que não existe.
Pergunta - O que você acha que tem mais integridade, a publicidade ou o mercado de arte?
Hirst - A publicidade, porque não vem acompanhada de frescura nenhuma. Ela vai direto ao ponto, não mente, fala a verdade, fatura dinheiro, dá risada -ela é a verdade, porque vende um produto.
Pergunta - É o mercado massivo da publicidade que o seduz? O fato de poder falar a milhões de pessoas simultaneamente?
Hirst - Talvez. Mas o que eu realmente adoro na publicidade deste país é que o público em geral tem uma educação visual tão boa, devido aos bilhões de libras que as multinacionais gastam com publicidade todo ano. Adoro isso. O fato é que se investe muito nos comerciais só para vender um produto.

Continua à pág. 5-9

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