São Paulo, domingo, 23 de novembro de 1997
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O pecado faz ponto ao lado

ADRIANA VIEIRA; MARCOS DÁVILA

Amanda, 22, que faz ponto na av. Indianópolis, sonha em juntar dinheiro para comprar um Mazda e montar um salão de beleza em Natal, onde nasceu

O padre Antônio diz, em sermão, que o seu bairro (Ibirapuera) está infestado de burgueses frustrados sexualmente, que correm como baratas atrás de travestis

O Sol mal tinha deixado o bairro do Planalto Paulista na quarta-feira, dia 12, quando um táxi bateu em um Logus cinza no cruzamento da avenida Itacira com a alameda dos Apetubas. O estrondo chamou logo a atenção dos moradores que saíram à rua para ver o acidente. Do táxi, um Golf branco, saíram quatro travestis aos gritos com o motorista do Logus. A cena foi suficiente para provocar a ira dos moradores: "a gente não tem mais paz", "toda noite é igual", "olha o que virou o nosso bairro", "os táxis vêm descarregar esses lixos aqui".
O acidente é sinal de uma nova guerra em São Paulo. De um lado, moradores indignados, incomodados e aviltados moralmente. Do outro, travestis escandalosos, desinibidos e sem nenhuma preocupação moral. "Gente de família", católica, com dinheiro versus homens afeminados, imigrantes, de origem pobre.
É difícil não dar razão aos dois lados nessa batalha, que pode explodir em violência. Quem vive perto dos pontos de travestis tem de conviver com os "escândalos", a falta de pudor desses homens que exibem seios moldados em silicone e com o congestionamento provocado pelos carros -a maioria novos ou importados- dos clientes.
"Moro aqui há 13 anos. Meu filho de dez anos cresceu vendo essas indecências. Uma noite, quando chegávamos de carro, dois travestis faziam sexo oral na calçada perto da minha casa. Ainda bem que o meu filho estava sonolento e não deve ter visto", reclama a moradora M., da alameda dos Guaicanãs, que não se identifica com medo de represálias.
M. faz parte da Sociedade Amigos do Bairro Planalto Paulista, que já recorreu à polícia, vereadores e prefeitura em busca de uma solução. Entre as exigências do grupo estão mais patrulhas na região, melhor iluminação nas ruas, instalação de lombadas para dificultar o acesso dos clientes e o fechamento do drive-in Bolinha -que, segundo o funcionário Ademir Alves, há oito anos não aceita travestis porque são "bagunceiros e discutem muito com os clientes".
Ou seja: a solução é enxotar os travestis do bairro. É aí que fica difícil não dar razão também ao outro lado. "Não podemos dizer que todos os travestis são santos. Mas não é preciso ser sociólogo ou psicólogo para saber que o travesti cai na prostituição por falta de opção profissional", diz Elias Lilikã, 31, secretário de informação da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis.
"O travesti é tão discriminado porque a forma que ele se mostra na rua é exatamente o oposto da ordem machista estabelecida. Ao contrário dos michês, que conseguem disfarçar, o travesti está superexposto. Afinal, um homem com silicone e de saia ainda é considerado doente", diz o sociólogo da USP Antonio Sérgio Spagnol, 37, autor da tese "O Desejo Marginal".
No seu mestrado, Spagnol mostra a migração dos homossexuais do centro para bairros residenciais, como Planalto Paulista, Butantã, Lapa e Tatuapé. Sobre os travestis, o sociólogo concluiu que a mudança ocorreu para evitar a polícia e para resguardar os clientes. "Eles preferem zonas mais sombrias e isoladas, como as residenciais, para facilitar o trabalho", diz Spagnol.
Do ponto-de-vista legal, não há o que fazer. "Usar roupa de mulher não é crime. Prostituição também não. Eles têm o direito de ir e vir como qualquer cidadão", diz o delegado Naief Saad Neto, do 27º DP no Campo Belo.
Se o Estado não ajuda, alguns moradores têm apelado à Igreja. Há um mês, começaram um movimento de orações para afastar a prostituição e "converter" os travestis. Até agora, 20 moradores já cederam suas casas. Eles se reúnem toda semana com o padre Antônio, que não quis revelar o sobrenome, diante de um altar improvisado para rezar o terço. Sentados em círculo, entoam cânticos embalados pelo violão do religioso.
Depois da música, há um sermão. Na semana passada, o padre disse: "Já apelamos a todos os meios legítimos para acabar com a falta de decência e o homossexualismo do nosso bairro. Nada adiantou. Então, só nos resta rezar".
No final da sessão, o padre põe a batina e abençoa a casa. Ele acredita no efeito das pregações. "Quando eu trabalhava em Curitiba, fizemos o mesmo movimento para acabar com o tráfico de drogas e deu certo", diz.
Alheio aos apelos divinos, o aposentado Laércio C. A., 72, morador de Indianópolis há 50 anos, não esconde a raiva: "Já que a polícia não resolve, as leis não adiantam, o governo não ajuda, o jeito é cada morador pegar um, quebrar o pescoço e jogar no rio Pinheiros."
Outro vizinho ecoa: "A situação chegou a tal ponto que eu estou pensando em comprar creolina e jogar em frente à minha casa para espantá-los."
Ameaças dificilmente intimidam os travestis. Violência é o feijão-com-arroz no cotidiano de quem anda de salto alto e batom, mesmo tendo sido batizado como João ou Antônio. A situação deles talvez seja a pior entre todas as minorias: são alvo fácil de agressões de policiais e baderneiros, são desprezados pelos outros homossexuais e são, quase sempre, odiados pelos próprios clientes.
Quem procura travestis, em geral, é casado, tem dinheiro e não assume a homossexualidade. As transas são rápidas -90% dos clientes são passivos- e acontecem dentro de carros, em motéis e até na rua. O programa custa em média R$ 50 e dura meia-hora.
Casos de agressões, de ambas as partes, não são raros. Há um mês, a travesti Amanda, 22, levou três tiros na avenida Indianópolis. Uma bala atingiu suas costas, saindo pela prótese do seio esquerdo. As outras duas acertaram seu ombro direito e o braço esquerdo.
Ela diz que o cliente não queria pagar o combinado -R$ 80 para transar com ela e outro travesti- e sacou uma arma. "Fizemos de tudo, mas, no final, o ocó (homem) queria dar apenas R$ 40. Ele sacou uma 765 automática, atirou e fugiu", diz Amanda, que na semana passada já exibia as coxas e os olhos verdes para os carros enfileirados na Indianópolis.
Na mesma avenida, há cinco meses, ocorreu o "incidente" que levou os travestis Jéssica e Márcia, ambos de 20 anos, a serem acusados de assaltar um rapaz de 18 anos. Presos em um distrito policial, eles esperam o julgamento.
"Era a terceira vez que eu fazia programa com ele e, daquela vez, transamos no carro. Quando terminamos, ele disse que precisava sacar no caixa eletrônico o uaqué (dinheiro) para me pagar. No caminho, Márcia pediu uma carona até a avenida Paulista, e ele concordou", conta Jéssica.
Segundo ela, o rapaz teria pago R$ 470 -"de livre e espontânea vontade". Mas, minutos depois, chamou um carro da PM e as acusou de roubo. Os policiais levaram os dois travestis e apreenderam uma lâmina. "Era só um pedaço de gilete, guardado na minha necessaire, que eu uso para apontar o lápis de olho", diz Márcia.
Procurado pela Revista, V., a vítima, não quis falar. Apenas disse, pelo telefone: "Não procuro travestis. Isso me deixou muito traumatizado, não saio mais à noite e evito andar sozinho".
V. é exceção porque a maioria das vítimas não registra queixa contra travestis. "Cliente ou não, ele tem vergonha e só procura a delegacia quando roubam seu documento, cartão de crédito ou talão de cheque", diz Saad Neto.
Foi o que aconteceu com o empresário P.B., 38. Ele diz ter sido assaltado por três travestis também no Planalto Paulista há dois meses, mas não registrou ocorrência.
"Depois que eles desceram do meu carro, estava próximo à 4ª DP. Pensei em dar queixa, mas tive medo que a polícia, em vez de ajudar, piorasse a minha situação. A falta de credibilidade me fez ir direto para casa", afirma.
P.B. diz ter sido abordado no seu Citroen pelos travestis, armados com uma lâmina, em um semáforo na avenida Indianópolis. "A chefona estava muito revoltada, falava palavrões e uma linguagem que eu não entendia. Disse que estava com Aids e precisava de dinheiro", conta.
O travesti o obrigou a parar em uma farmácia na praça 14 Bis, Bela Vista, onde gastou R$ 300 em medicamentos, tinturas e escovas para cabelo, pagos por P.B., que ainda assinou outro cheque de R$ 300. "Sei que poderia ter reagido, mas fiquei acuado, com medo do escândalo. Ele ameaçava o tempo todo cortar os braços, me cortar e me contaminar", diz P.B., que não sustou os cheques e não contou nada aos amigos com medo da pecha de gay.
A maioria das histórias criminais envolvendo travestis é assim nebulosa, envolta em todo tipo de preconceito. Bárbara, 23, que faz ponto em frente ao Jóquei Club, é testemunha do assassinato de uma colega. "Uma amiga me perguntou se eu queria fazer uma suruba. Entramos no Gol GTi cinza do cliente e fomos para o motel Pop's, aqui perto. O cliente, um motorista da polícia civil, pagou R$ 100 no motel, mas o combinado era R$ 200", conta.
Ela diz que o cliente estava "muito louco" e parou num caixa 24 horas. Em vez de tirar o cartão, sacou um revólver e atirou na amiga de Bárbara. "Ele atirou no peito dela, na minha frente, a sangue frio." Bárbara saiu correndo, levou um tiro na perna, mas conseguiu se esconder atrás de uma moita.
Segundo o delegado Carlos Frederico Calazans, do 34º DP, onde foi aberto o inquérito, o acusado se entregou dias após o assassinato, alegando legítima defesa. A versão dele é que os travestis tentaram assaltá-lo em frente ao banco. "Ele trouxe um punhal com a inicial do 'nome de guerra' da vítima e mostrou um ferimento no ombro. Travestis geralmente são violentos, marginais perigosos", diz Calazans. O caso ainda não foi a julgamento.
Segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia, realizado a partir de casos noticiados pela imprensa, 37 dos cerca de 7.000 travestis brasileiros foram mortos em 96. Em São Paulo, foram registrados nove homicídios, perdendo só para Pernambuco (10 casos) e Rio (12).
A solução para o problema? "Não adiantar colocar todos os travestis numa ala do Carandiru e exterminá-los, nem fazer uma lei que proíba matar travestis. Faltam medidas governamentais que tragam mais informações para sociedade e para os travestis", diz Lilikã.
O delegado Saad Neto lembra do final pacífico de um caso há três anos, no Itaim Bibi (região sudoeste). Uma dona-de-casa enfrentava o mesmo problema dos moradores do Planalto Paulista: a frente de sua casa era ponto de travestis. Na madrugada, quando a polícia passava, eles pulavam o muro da sua casa e se escondiam no jardim. Também usavam o local como banheiro.
Não adiantava chamar a polícia, porque elas eram soltas no dia seguinte. Cansada, fez um trato com os travestis, estabelecendo regras de convivência. Ela deixaria o portão aberto para os travestis usarem um banheiro de serviço e tomarem água, mas, em compensação, eles não usariam mais sua jardim esconderijo e, nos dias festas ou de visitas, não ficariam na frente da sua casa.
Com experiência de 15 anos na área, o delegado Saad Neto diz: "É preciso aprender a conviver. Os travestis só passam a agredir quando são agredidos pela comunidade. Não adianta expulsá-los da frente da sua casa, porque eles vão para a frente da casa do outro."

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