São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 1997
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Com a cara e a coragem contra a Aids

BELL KRANZ; SILVIA RUIZ
EDITORA DO FOLHATEEN

SILVIA RUIZ
Esta entrevista deve fazê-lo perceber que a Aids pode estar bem mais perto de você do que imagina. Valéria Piassa Polizzi, 26, de classe média alta, pegou Aids aos 16, com o namorado, na primeira transa. Agora, ela lança um livro e luta contra outra "doença", pior ou tão ruim quanto a Aids: o preconceito.
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Folha - Você não tinha preocupação com sexo seguro?
Valéria - Não. Na época, o jeito que falavam na escola sobre doença sexualmente transmissível fazia a gente dar risada. A gente dizia "Ai, gonorréia, sífilis, coisa de homem..." Aids era coisa de gay, de prostituta, de hemofílico, só. Havia aquela palavra que nunca deveria ter sido usada, que é grupo de risco. Então, eu não achava que era grupo de risco. Transava com o meu namorado, o único, pela primeira vez. Eu nunca imaginei isso.
Folha - Quando você conta os momentos difíceis por que passou, você fala rindo.
Valéria - É. Porque hoje eu paro pra pensar e falo: "Gente, que ridículo, porque é tudo uma questão cultural. Havia aquela propaganda "Aids mata!", que foi um erro absurdo, e eu passei dez anos vivendo uma coisa que ninguém com Aids merecia. Agora estou aqui, vivinha da silva, é meio irônico, ridículo até.
Folha - E namorado?
Valéria - É complicado. Você fica, vai numa festa, encontra um monte de gente, vai lá nos cantos, dá uns beijos, aí... "estamos namorando!". Quando você está com Aids, você pensa: "E aí, conto antes de dar esses beijos?". Mas você nem conhece direito a pessoa que está beijando! Então, você decide: "Dane-se, acho melhor não ficar com ninguém". A sociedade não está preparada para isso.
Folha - Falta o quê?
Valéria - Escrevi esse livro pra mostrar que a doença é ruim, mas não é essa coisa que não dá para falar. Às vezes, conversando com os amigos, falo não sei o quê de Aids, e eles dizem: "Pára com isso, não quero nem ouvir, é a coisa mais deprimente do mundo". Ou seja, a pessoa passa horas ali comigo, conversando, e vem falar que Aids é a coisa mais deprimente!
Folha - O seu objetivo é desmistificar e unir as pessoas aidéticas?
Valéria - Aidéticas não, pessoas com Aids. A gente não fala aidético porque não pode botar a doença na frente da pessoa. Se a pessoa tiver câncer, você não a chama de cancerosa. Então, por que aidética? A doença não está na frente da pessoa. A pessoa não perde a identidade. Não sou uma aidética, sou uma pessoa, Valéria Piassa Polizzi, muito bem de vida, entendeu?
Folha - Você fala no livro que descobriu o prazer do sexo seguro.
Valéria - Participei muito de grupos de apoio com pessoas com Aids, e há muitas oficinas de sexo seguro. As pessoas ensinam a ter prazer sem ou com menos riscos. Tem a camisinha, sexo oral de Magipack. Sabe o que é Magipack? Aquele plástico fininho. Há também o que as pessoas sempre falam: sexo não é só penetração, tem as preliminares.
Folha - O que você acha das campanhas antiaids do governo?
Valéria - As pessoas não querem falar em Aids. Lembra aquela campanha do Bráulio? Era uma campanha de Aids, e ninguém falou, só do bendito do Bráulio. Um jeito que eu acho que ajuda é mostrar que as pessoas com Aids são normais. Senão amanhã um cara vai transar e fala "ela é bonita, é isso, é aquilo", e nunca passa pela cabeça que ela pode ter Aids. As pessoas se assustam comigo: "Nossa, você tem Aids?". Como se a doença mudasse a identidade da pessoa. Não muda, não muda.
Folha - Por que se expor?
Valéria - Sou de classe média alta e, se eu ficar sem emprego, meu pai me sustenta. Há um ano que estou superbem de saúde, viajo, faço o que quero fisicamente. Agora, que eu comecei a dar entrevista, não sei se vou chegar na minha natação e neguinho vai falar: "Você não vai nadar mais". Todo mundo sabe que Aids não pega na piscina, mas vai nadar com alguém que tem Aids! Entendeu?
Folha - Você está namorando?
Valéria - Não. Passei dois anos da minha vida com Aids sem saber, mas não transei com ninguém. E muita gente que tem Aids e nem desconfia que tem! As pessoas acham que Aids é coisa de marginal, tanto é que alguns dizem: "A Valéria é uma exceção porque ela é de classe média alta". Eu não sou uma exceção, só sou exceção porque estou falando, mas conheço um monte de gente que tem Aids, é de classe média alta e namorou uma vez só.
Folha - A vida sexual dos seus amigos mudou com a sua história?
Valéria - Eles viram que podem acontecer com um de nós, as pessoas sempre acham que é coisa lá do vizinho. Mas eu tenho amigas que ainda transam sem camisinha.
Folha - E o que você fala?
Valéria - Não falo nada. A pessoa sabe que eu peguei desse jeito. Não vou falar: use camisinha, use. As pessoas têm de parar e conversar. Elas transam e não conversam. Porque também não é só Aids, há um monte de doença sexualmente transmissível. Nos grupos de apoio, você vê que isso é uma coisa absolutamente normal entre meninas de classe média e de família.
Folha - E o primeiro namorado?
Valéria - Ele faleceu.
Folha - Ele sabia que tinha Aids?
Valéria - Isso não me interessa pelo seguinte: ninguém contamina ninguém. As pessoas se contaminam. Quando ela vai transar, ela tem de saber que 50% da responsabilidade é dela, e 50% é do outro. Então, não tem essa: "Ah, fui contaminada". Não é. Você se contaminou, porque hoje em dia todo mundo sabe que existe Aids.

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