São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 1997 |
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Chame o anestesista
GUSTAVO IOSCHPE
O que acontece é que a anestesia funciona só pela metade: o efeito sedativo ocorre, mas o analgésico, não. Trocando em miúdos, ela põe você pra dormir, mas você continua com os sentidos afiados. O resultado, caso você seja daqueles que precisam do melhor amigo do mocinho explicando a tramóia, é que você sente a dor de ser cortado, retalhado e costurado, mas não consegue falar nada por causa do sedativo. Porque a primeira parte da anestesia funciona, não há jeito de você comunicar a dor. Você não pode falar ou se mexer. Só lhe resta rezar para que o cirurgião fique louco de tesão pela enfermeira ("bisturi, gostosa") e tenha de interromper a "carnificina" por razões menos nobres. Quem passa pela experiência tem os mesmos sintomas de estresse pós-traumático que acometem vítimas de guerras ou crimes violentos: pesadelos, paranóia, medo de qualquer coisa relacionada a hospital. O trauma é aumentado pelo fato de os pacientes terem de presenciar o desprezo de alguns médicos durante a cirurgia. Uma mulher contou (juro que não é a minha imaginação) que, enquanto era operada, os médicos ficavam comentando: "Pô, até que tá inteirona pra essa idade, hein?" "É, mas tá com os peitos meio caídos..." Houve também o caso de um paciente que teve de aguentar as gozações das enfermeiras, que ficavam manuseando o seu pequerrucho e comentando o tamanho reduzido do... instrumento. A situação toda lembra o nosso Brasil nessa crise econômica. Assim como a última coisa que se espera em hospital é sentir dor, a última coisa que se esperava sob o reino do Kaiser FHC era problema econômico -até porque essa é a única atividade a que esse governo se presta. A anestesia -uma mistura de inflação baixa, milhões de dólares em publicidade e um deslumbramento dos formadores de opinião com o presidente poliglota- até estava servindo pra disfarçar, mas com o tempo a parte sedativa não adiantou, e a política de sobrevalorização cambial e juros alucinantes começou a doer pra burro. Parte do anestésico ainda funciona, porque muita gente boa continua achando que essa crise era algo inevitável e que, nessa tal de economia globalizada, cada vez que cai a bola de Hong Kong a vaca tem de ir pro brejo em terras tupiniquins, talvez por alguma conexão energética tipo "yin" e "yang". Muitos ainda não notaram que essa caca podia ter sido evitada se o pessoal do palácio baixasse um pouco a crista e adotasse medidas para o bem do país, e não visando a próxima eleição. A paridade do real com o dólar é uma escolha política, longe de ser uma realidade econômica. E essas reformas de supetão só mostram o que o governo deveria e poderia ter feito há muito tempo se não estivesse tão enfeitiçado pela reeleição. Agora, é isso aí, vai doer mesmo por algum tempo. Só se espera que, nesse ínterim, a maioria acorde e entenda que estamos sendo operados por cirurgiões que só metem a faca quando lhes convém. E sem anestesia. Texto Anterior: História sem lamentação Próximo Texto: Praticar hóquei in-line é pura adrenalina em cima dos patins Índice |
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