São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 1997
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Pelos subterrâneos do poder... doente ou poeta?

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

O vendedor de livros é um homem simples, que usa terno e gravata porque precisa disso para entrar nos corredores do Congresso. Sente-se que não está muito à vontade nesse estilo europeu, mas segue abraçado a sua grande pasta preta, onde estão suas surpresas.
No princípio, chegava humildemente na porta do gabinete, esperava um momento e atacava com uma novidade em obras completas. Fernando Pessoa em edição européia, mais de R$ 400, Fernando Pessoa em edição brasileira, quase a metade do preço.
-Doutor, compre a européia, esse papel vale qualquer sacrifício.
Com muita habilidade, ele me empurrou Guimarães, Murilo Mendes e o próprio Pessoa. Agora já entra com segurança no gabinete, descobriu que sou dependente e sabe que as edições completas não saem sempre -já não nascem mais, e portanto não morrem, os grandes escritores.
A última vez que apareceu (ele sabe como ninguém dividir uma dívida no tempo, jogar com os cheques pré-datados) trouxe Jorge de Lima e jogou na minha mesa. O livro tinha uma capa de plástico e ele a arrancou teatralmente:
-Veja, doutor, dê uma olhada na "Invenção de Orfeu". Isso vale o livro.
Valia, sem dúvida. É um poema que atravessa o tempo, desafiando críticos e estudiosos. Mas não era "Invenção de Orfeu" que me atraía naquele instante. Tinha de sair para votações e queria dar apenas uma olhada no "Grande Circo Místico", repassar alguns versos antes de encontrar o plenário, os sussurros da política.
"... Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais
e o leão que já havia comido dois ventríloquos
quando ela entrava nua pela jaula adentro,
chorava como um recém-nascido..."
Ainda queria dar uma olhada em Marie e Helene, as filhas de Margarete, mas o tempo era curto. Sabia que eram virgens e que banqueiros e homens de monóculos esbarravam nessa membrana de aço que era sua pureza. Marie e Helene também se apresentam nuas, a platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Tenho de concluir a conversa. O alto-falante da Câmara anuncia a votação. O presidente pergunta ao microfone: como vota o PV?
Como vota o PV? Com o "Grande Circo Místico" ou com a "Invenção de Orfeu"? O vendedor percebe minha hesitação e lança a oferta:
-Sessenta agora e um cheque pré-datado para o mês que vem.
O que fazer, agora que percebeu minha fraqueza? Sabe que preciso de força para cruzar os corredores, atravessar detectores de metal, saudar os pares, salvar a pátria. Abre na página 507, senta na cadeira e olha com calma e confiança, minha reação:
"... Mesmo sem naus e sem rumos
mesmo sem vagas e areias,
há sempre um copo de mar
para um homem navegar."
Assino o cheque, coloco o pequeno volume verde debaixo do braço e me vingo dele dizendo apenas:
-Sei que você tem o Machado no porta-malas do carro. Mas seria o último. Não há mais ninguém para vender.
O vendedor abaixa a cabeça como se estivesse derrotado. Puro teatro. Sorri de cabeça baixa, sabendo que o próximo lance ainda é desconhecido, que voltará a vencer, se chegar na hora certa, com o livro certo.
Resta-me o longo caminho subterrâneo com Jorge de Lima, milagre das Alagoas me tomando pela mão para ver os mistérios da língua do meu país:
"Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios
e ao chegar os sertões e os fiéis enganos,
amar os sonhos que restarem frios
Porém se não surgir o que sonhamos
e os ninhos imortais forem vazios,
há de haver pelo menos por ali
os pássaros que nós idealizamos
Feliz de quem com cânticos se esconde
e julga tê-los em seus próprios bicos
e ao bico alheio em cânticos responde
e vendo em torno as mais terríveis cenas
possa mirar-se as asas depenadas
e contentar-se com as secretas penas"
Como dizia Mário de Andrade, no consultório de Jorge de Lima havia sempre duas salas de espera: uma para os clientes da medicina, outra para os clientes da poesia. Há qualquer momento das horas de consulta, havia sempre no escritório um doente e um poeta.
Resta saber quem sou eu, nesses longos corredores, com o livro verde na mão, lembrando os poemas que povoaram a adolescência:
-Zefa, chegou o inverno
Formiga de asas e tanajuras
Chegou o inverno!
Lama e mais lama
chuva e mais chuva, Zefa.

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