São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O rei, o chuvisco e o dilúvio

CANDIDO MENDES

É o próprio presidente que se antecipa, frente à precipitação da borrasca das Bolsas asiáticas para aquietar os súditos. É "chuvisco". Nos jogos da especulação delirante, é componente também, e decisiva, o que queira dizer, por sobre o que fala, o último responsável pelos rumos do país. A palavra de FHC é muito mais do que uma estratégia. Transforma-se em fator de iniciativa num jogo que deixou, há muito, a dimensão econômica. O que, no financeiro, afinal, não é o político? O que está em jogo é a convergência entre a miríade de decisões privadas pelo máximo lucro instantâneo -qual a peste dos gafanhotos- e o propósito de uma nação de disciplinar o que, na Bíblia, já se definia como a fatalidade das pragas, dos insetos devastadores, como do tremeluzir das cotações de títulos.
Perdemos neste biênio as condições de segurar rédeas nesse universo, na brutalidade de suas forças originais. É ainda tempo de Gustavo Franco falar em possíveis freios ao capital financeiro? Que venham logo, a impedir a especulação crassa de franjas piratas dos capitais de terceiros, nesses fundos, à cata da vantagem instantânea, e à margem do capital próprio desses operadores. De qualquer forma, perdemos a hora de negociar o nosso bom-mocismo internacional, impondo quarentenas ao dinheiro perigoso, o que permitiu ao Chile -mostra-nos Maria da Conceição- separar o joio do trigo, o que deu àquele país a melhor performance entre os aspirantes à globalização. Toda a honra e toda a glória, de qualquer forma, à galhardia do BC, segurando a marretada cósmica, sem entrar nos mercados de títulos externos, sem contaminar os ditos "bradies" e logrando, afinal, com o sangramento das nossas reservas acumuladas no exterior, manter ainda no país os capitais retirados, no momento, do pano verde da Bolsa.
Mas aí vão, à conta nacional, os quase US$ 8 bilhões retirados da reserva de dólares no exterior, bem como as dúvidas quanto a mantermos o afluxo de US$ 2 bilhões ao mês, necessários para equilibrarmos, na meta dos US$ 30 bilhões, a nossa conta de transações correntes. Números a voltarem ou a se evadirem de vez, noves fora, o que fica em todos os presságios é o crescimento pífio, amodorrado que nos aguarda em torno de 1,5% do PIB para 98, quando deveria rolar o tapete vermelho da reeleição triunfal do segundo tucanato.
Não importa o ter-nos custado na terça-feira negra de outubro a perda de mais de uma Vale do Rio Doce, entregue no leilão das privatizações. Começam a perder a escala os números do dinheiro bom e visível, posto no saneamento e na mudança nacional, e o que arriba sai, retorna e arromba.
Tanto o presidente diz que não é liberal, que trocou o orbe econômico pelo financeiro, tão anônimo quanto inescrutável na desordem trazida aos antigos reinos da razão. Mas sobram a FHC decisões capazes de modular o mundo da especulação. Se logra manter o câmbio, assim o faz a partir da outra decisão que é como a sua sombra, ou seja, a do preço externo da nossa estabilidade. A solidez do Real tem, como contrapartida, a quadriplicação das reservas em divisas pedidas normalmente a um país confiável. Pelo que já imolamos à estabilidade da moeda e pelo sacrifício interno imposto pela taxa de juros, temos agora ou não o direito de uma promoção dessa credibilidade, ficando nos valores normais de solvência nos mercados externos, que não excedem o valor de dois meses das exportações?
O que hoje mais luz, entretanto, ao príncipe é o brilho dos US$ 30 bilhões que amealhará o país com a final privatização monstro, a negociação do nosso verdadeiro bezerro de ouro, nos adros da globalização com o conjunto das Telecons. A terça-feira negra propiciou a FHC a iniciativa inapelável entre sacrificar verdadeiramente sua popularidade nestes meses e a operação desse recurso nosso, decisivo, no mercado internacional. O melhor momento para a "grande privatização" será o mais favorável ao ganho das eleições, ou a hora propícia para essa venda, nos seus avanços ou recuos, nos exporá, a bem do país, a ficarmos num período "de vacas magras" à época das urnas?
A bala é uma só e só um atira: o alvo é da mesma magnitude em que o tucanato jogou tudo no sucesso do Real. Entregamo-nos à confiabilidade dos mercados com o açodamento de noviços, a partir de 94. Despojamo-nos, de saída, dos controles que nos poderia, agora, garantir um freio, entre o susto e o pânico. Mas vão é o propósito, nessa conjuntura, de escaparmos da roleta. Vivemos num remanso o bom tempo da globalização. Nesse dilúvio agora, conhecemos o tamanho das ondas, capazes de arrebatar o Real e suas âncoras, num ataque especulativo que diga, de fato, a que veio. Quantas crises, ainda? Quantos "days after" ainda, neste mundo em que somos vítimas ou beneficiários de uma vontade de que, de vez, fomos expropriados?

Texto Anterior: O Planet Hemp e a hegemonia do cinismo
Próximo Texto: Pinochet; Esclarecimento; Bienal de Arquitetura; Impunidade nos trópicos
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.