São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 1997
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Grafite expõe homens e ruínas

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

"Eu quando tinha 13 anos eu fui estrupado aqui. Vim com um amigo que era estranho que eu conheci ele no mesmo dia que eu fui estrupado. Depois disso a minha vida mudou muito. Mudou o meu rosto, meu corpo e o meu coração. Eu era firgem, fufinho, um santo. Agora eu tenho 20 anos e gosto de por o meu corpo em forma. Eu esprimentei e gostei."
Quem visita a mostra paulistana Arte/Cidade 3 dificilmente deixa de parar diante da inscrição, que está impregnada numa das paredes em ruínas do Moinho Central.
Um certo Eduardo assina o relato, com letras graúdas e negras. Teve o cuidado de registrar a data: 1994.
Eduardo não é artista, e o grafite não compõe nenhuma das 40 obras que participam do evento. A pichação já se encontrava lá, entre os escombros do moinho, quando os organizadores do Arte/Cidade chegaram.
Há bem mais, nem sempre tão descritivas, que se espalham igualmente pelos destroços das indústrias Matarazzo, o outro cenário da exposição.
São frases inacabadas, palavras de ordem, rabiscos sem nexo, propagandas políticas, xingamentos, desenhos trêmulos, filosofias de banheiro, emblemas de gangues, alertas, ironias -milhares de ícones que convidam o público a uma espécie de arqueologia urbana (leia quadro à direita).
As inscrições revelam muito sobre os antigos frequentadores daqueles espaços. Vasculhá-las significa desvendar a rotina dos pontos de drogas, invadir abrigos de sem teto, iluminar meandros sombrios de São Paulo.
Significa também engrossar a teia de sentidos da própria mostra. O Arte/Cidade 3, que termina domingo, intervém sobre a urbe degradada para promover o diálogo das obras expostas com o entorno, da metrópole que se vê com a que se esconde, dos ambientes ainda úteis com os abandonados e da marginalidade com os meios sociais que se consideram retos.
Os grafites, subvertendo as normas da língua culta, participam ativamente dessas conversas -e o depoimento paradoxal de Eduardo é a melhor prova.
Narra um ato de violência, o estupro, mas lhe confere valores positivos, de prazer, de transformação ("mudou o meu rosto, meu corpo e o meu coração", "esprimentei e gostei").
Relativiza-se, assim, o submundo. Extraem-se do sujo o lúdico, a metamorfose e até o deboche, exatamente como se dá quando artistas atuam sobre ruínas.
Na última terça-feira, mal leu a pichação, uma moça comentou com alguém que a acompanhava: "Acho que o escrito faz parte daquela obra ali".
Referia-se à instalação de Hélio Melo, "Pisantisurbanos", que fica perto da parede onde está o grafite de Eduardo. É uma sala larga em que se espalham 9.000 sapatos.
A moça enxergou, na intervenção de Melo, alusões às fotos de jornais popularescos. "Sabe aqueles retratos que mostram cadáveres dentro dos matagais? Então... Existe sempre um sapato por perto, perdido...", falou para o acompanhante.
Depois, concluiu, rindo: "Talvez o sujeito que estuprou Eduardo o tenha largado ali, naquela sala, confuso e sem sapato."
"Curioso", diz Melo. "Não concebi nada para dialogar com o grafite. De início, pensei até em pintar as paredes, em cobrir todas as inscrições que poderiam interferir no meu trabalho."
Cachimbo
A relação das pichações com as obras é, às vezes, mais explícita. Tome-se o caso da instalação de Patrícia Azevedo, que também ocupa uma sala do moinho.
Compõe-se de dez fotos que remetem o espectador para o passado e o presente de São Paulo. Na parede, sob o conjunto de imagens, estende-se uma frase, escrita com tinta azul: "A arte é apenas um ponto de vista".
O grafite não existia quando a artista montou o trabalho. "Queria que as fotos estabelecessem uma interlocução com a memória de todas as pessoas que visitam a mostra", explica Patrícia. "Mas nunca imaginei que alguém iria se manifestar literalmente."
Ainda no Moinho Central, pode-se ver uma instalação em que centenas de seringas descartáveis espetam o chão de concreto, formando um quadrado. A figura geométrica abarca um enorme cachimbo de crack.
É um claro comentário do artista -Cildo Meirelles- às pichações que, ao longo de todo o edifício, condenam ou exortam o uso de drogas.
Nas indústrias Matarazzo, o trabalho de Carlos Vergara ("Farmácia Baldia") chega a incorporar um grafite. A instalação exibe mudas de plantas medicinais que costumam nascer pelas imediações da fábrica.
As ervas, presas nas paredes, combinam-se com desenhos que lembram ilustrações de almanaques. Vergara fez todos -exceto um coração negro que já encontrou por lá.
Caverna
Uma de suas instalações no moinho reúne anúncios de jornal que promovem encontros sexuais. As paredes ao redor abrem espaço para que os visitantes se expressem.
O resultado é eclético. Há mensagens maliciosas ("Nastassia, desejo loucamente ter uma relação turca com você. Ass: Turco Louco), pregações religiosas ("Só Jesus pode salvar o Brasil") e recados prosaicos ("Procuro minha correntinha de ouro. Acho que perdi por aqui. Quem achar favor ligar para 236-1598. Brigado").
"Às vezes me ocorre que, quando a mostra terminar, restarão somente os grafites -os novos e os que já existiam", diz Celso Rosa, um dos monitores do Arte/Cidade. "O moinho e as indústrias Matarazzo voltarão a ser, então, apenas um labirinto empoeirado, uma caverna contemporânea repleta de inscrições rupestres."

Evento: Arte/Cidade 3
Onde: trajeto entre a estação ferroviária da Luz, o Moinho Central e as indústrias Matarazzo. (acesso pela Luz ou pela avenida Francisco Matarazzo, 1.096, em São Paulo)
Quando: de terça a domingo, das 12h às 21h. Até 30 de novembro
Quanto: entrada franca

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