São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 1997
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Morte e demagogia na USP

RICARDO BONALUME NETO

Experiência e memória são coisas úteis a um jornalista. Eu estudei na Universidade de São Paulo de 79 a 85, em dois cursos diferentes de graduação. Como jornalista desta Folha especializado em ciência, desde então escrevi frequentemente sobre a universidade, maior produtora de ciência do país.
Em todos esses anos, nada me enojou tanto quanto o festival de demagogia criado em torno da morte do adolescente Daniel Pereira de Araújo na raia olímpica.
Vergonhosamente, a morte do garoto foi utilizada para fazer politicagem rasteira durante o processo de escolha do novo reitor, e os principais culpados foram as associações sindicais e estudantis. Houve quem acusasse o reitor de assassino. Até o remo foi acusado de "elitista", já que o "povão" não o praticaria.
Curiosamente, um dos maiores perpetradores de bobagens foi um ex-professor meu da Escola de Comunicações e Artes, Jair Borin, hoje presidente da Associação dos Docentes da USP.
Experiência e memória são, de fato, coisas úteis. Lembro que meus colegas de curso chegaram a pedir ao então reitor a contratação de Borin. Foi um processo útil de aprendizado: se, durante a noite da ditadura, todos os gatos de esquerda eram pardos, com a redemocratização foi possível perceber o quanto de fato valiam.
Borin era o professor ideal. Faltava tanto que eu e meus colegas tínhamos mais tempo para ir ao "Rei das Batidas" conversar -e aprender mais do que seria possível nas suas aulas. Felizmente, tivemos outros professores menos interessados em politicagem e mais atentos à instrução de seus alunos.
O presidente da Associação dos Docentes não mudou nada. Continua preso a um esquerdismo infantil e inconsequente. "A USP ardeu duas vezes, ambas de forma trágica e contra o autoritarismo. A primeira em 1968, na Maria Antônia, no auge da resistência à ditadura militar", escreveu nesta Folha (pág. 3-2) no dia 10 de novembro.
A segunda vez -considerou ele- foi no protesto contra a morte do garoto. Para Borin, a administração do campus "insiste em isolar a universidade da comunidade que a envolve", por ter feito um muro para impedir a invasão do terreno da universidade.
Comparar o protesto com o episódio da rua Maria Antônia é uma ofensa ao passado de lutas democráticas da USP. Os tais garotos "excluídos" estavam lá depredando porque Borin e cupinchas instigaram uma manifestação politiqueira, na qual se viam, cinicamente, militantes do movimento estudantil chorando pelo "nosso Daniel", a quem nunca tinham visto antes.
Perderam o controle da manifestação porque adolescentes gostam de "zoar" e quebrar coisas. Sintomaticamente, a família do adolescente morto se comportou de maneira digna, deplorando a violência e exigindo a apuração do possível crime.
Já o funcionário Claudionor Brandão, diretor do Sintusp (Sindicato dos Trabalhadores da USP), declarou que o protesto era uma desculpa para a "militarização" da USP, por ter o reitor chamado a Polícia Militar para fazer a segurança do campus.
Como a maioria dos jornalistas, não morro de amores pela PM (de fato, as duas únicas vezes -por enquanto- em que alguém me apontou uma arma em São Paulo foram dois policiais militares). Mas isso não quer dizer que policiais sejam desnecessários ao funcionamento de uma sociedade. O acordo feito pelo reitor com a PM previa que os policiais nem teriam o direito de entrar nos prédios! Militarização um tanto falha essa.
Na avaliação do episódio também houve equívocos bem-intencionados, como os textos repletos de indignação da psicanalista Maria Rita Kehl (pág. 1-3, 10/11) e da articulista da Folha Marilene Felinto (pág. 3-2, 11/11).
É possível notar um equívoco sobre o papel de uma universidade por trás tanto da demagogia politiqueira como dos artigos dessas duas senhoras. Fica a impressão de que o papel da USP seria fazer ela própria justiça social; seu principal campus deveria ser, basicamente, uma praça pública para uso da população paulistana.
Convém repetir o óbvio. Uma universidade tem três principais objetivos.
O primeiro é educar: formar os profissionais críticos que a sociedade exige, para que eles possam participar do processo de construir um país socialmente mais justo. Kehl e Felinto são exemplos desses profissionais -tão críticos e bem-intencionados que chegam a se equivocar sobre a velha universidade.
O segundo é fazer ciência e formar pesquisadores, e nisso a importância da USP é fundamental não só para São Paulo, mas para todo o Brasil. Trata-se de uma universidade de "elite", cujos cientistas publicam textos nas principais revistas científicas do planeta. Mas os demagogos acham que tudo que é "elite" é ruim.
Em terceiro lugar, prestar serviços à comunidade. Basta lembrar os exemplos na área de saúde. Ao contrário do que diz Borin, a USP não está isolada da comunidade que a envolve. Ou será que o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP está isolado de São Paulo? O Hospital Universitário trata moradores da favela São Remo, onde vivia Daniel. Favela esta que, sem os tais "muros da exclusão", teria invadido ainda mais o campus.
O azar da USP foi ter um campus tão grande em uma cidade onde faltam áreas de lazer. A Cidade Universitária não foi planejada para ser praça pública. Faltam banheiros abertos a visitantes, por exemplo. E, se houvesse, quem pagaria o papel higiênico?
A universidade estadual deveria pagar pelo lazer de alguns paulistanos? A prefeitura paulistana não tem verba para limpar seus próprios parques ou cuidar de suas piscinas. Se mais piscinas públicas estivessem abertas, o garoto não teria ido nadar naquele local -que, antes de proibido, é impróprio.

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