São Paulo, sexta-feira, 28 de novembro de 1997
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A face cristã da igreja

MARIO SIMAS

A visita de João Paulo 2º ao Rio de Janeiro, destacada pela riqueza do aparato, foi farta de manifestações que contaram com a apresentação de conhecidíssimos cantores populares.
Questionou-se muito quanto aos reais alcance, motivação e oportunidade do suntuoso acontecimento, que restou analisado e medido politicamente, por intermédio da mídia, por intelectuais e membros da alta hierarquia da Igreja Católica.
Sob tal clima, veio a público, por iniciativa da Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro), o sinistro pensamento do presidente Ernesto Geisel a respeito da tortura como método de obter informações e confissões de adversários políticos -então considerados inimigos- quando da ditadura militar a que esteve submetida a nação.
Durante o império das baionetas, raríssimos foram os responsáveis pela administração da Justiça, no mais lato sentido, que deixaram de macular as vestes talares, assim como foram poucos, pouquíssimos, os purpurados que desnudaram e condenaram os detentores do poder por infligir suplícios de toda sorte aos perseguidos políticos.
O oportunismo é de todos os tempos e se faz presente em todas as sociedades, mas o cinismo e a covardia avultam na razão direta da supressão das liberdades democráticas.
Impõe-se dizer, por questão de justiça e atendendo ao momento, que, não obstantes as omissões, exemplares lições de solidariedade humana -com risco de morte e/ou prisão para os protagonistas- foram levadas à prática por um punhado de homens de fé, os quais, coerentes, não vacilaram em desmascarar os então novos fariseus, como os há ainda hoje.
Não foram apenas católicos que assim procederam. Presbiterianos, anglicanos, luteranos e israelitas também se posicionaram e passaram a lutar contra a barbárie que se instalara no Brasil, porque também tiveram os seus perseguidos e os seus mortos.
Os luteranos, diante do que corria nos porões da repressão, cobraram uma definição cristã de Ernesto Geisel. E "homens de notável saber jurídico e ilibada reputação", exigências para compor o Supremo Tribunal Federal, foram interpelados publicamente, na catedral de Brasília, como responsáveis pela violação aos mais elementares direitos da pessoa humana.
A recusa de d. Paulo Evaristo Arns em celebrar a santa missa e sentar-se ao lado de generais, brigadeiros e almirantes, por ocasião dos festejos do Sete de Setembro, enquanto houvesse tortura e presos políticos em São Paulo fez lembrar a grande figura de santo Ambrósio, patriarca de Milão, ao proibir o imperador Teodósio de entrar no templo por ter as mãos manchadas do sangue inocente que fizera derramar na Ásia.
O incansável trabalho de d. Helder Câmara, desenvolvido em auditórios repletos no estrangeiro -porque silenciado pelos militares no Brasil-, denunciando o que aqui acontecia, foi expressivo para o processo de abertura.
Em suma, o que ficou como modelo a dignificar a nossa gente e a concluir que sempre vale a pena lutar, quando a alma não é pequena, não foi o comportamento dos oportunistas de plantão, mas sim a postura dos inconformados.

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