São Paulo, sábado, 29 de novembro de 1997
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Alegria e preguiça (ou com livros e sem fuzil)

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Marcelo Coelho parece ter levado demasiadamente a sério a sugestão feita por Caetano Veloso, no livro "Verdade Tropical", de que é preciso "ler a imprensa de modo psicanalítico".
Caetano, como imagina Coelho em sua rasa interpretação da psicologia dos articulistas da Folha que escreveram sobre "Verdade Tropical", não era meu ídolo. Ele continua sendo. O que para mim é suficiente para jamais ter imaginado que ele pudesse escrever um livro de "ideologia odara, negaceios, charminhos e exibicionismos". Seria preciso desconhecê-lo para aventar a hipótese.
Para esclarecer: não sou um rábido inimigo da revista "Caras", onde, aliás, tenho prezadas amigas trabalhando. É um produto que cumpre sua função. Não sou ingênuo para crer que alguém possa "corromper-se" por exibir sala, piscina e bicicleta ergométrica em suas páginas.
Apenas acho ridículo. E concordo com Arnaldo Jabor, num artigo sobre a revista que merece ser relido, quando diz que ela é uma fantástica "contribuição para a semiologia de nossa caretice" -cujas mensagens redobram-se com a ausência dos "agentes da dúvida, o socialismo e os desbundes".
Foi com esses olhos que vi a emergência voluntária de Caetano naquele significativo ambiente editorial, feito sob medida para a vacuidade da sub-burguesia veludo & tafetá, com uma atitude que me pareceu estranhamente aderente, sem atrito ou comentário.
Mencionei o assunto não para salvar-me (de quê? de fazer meu trabalho?), mas como uma provocação, desejando sublinhar, com isso, a ambiguidade da figura do "superstar intelectual", que não esquece de dizer a seus leitores, numa passagem do livro, que seus critérios eram "bastante diferentes dos burgueses".
É óbvio que Caetano sabe dessa ambiguidade -como de outras ligadas ao tropicalismo- e sobre elas escreve inteligentemente em "Verdade Tropical". É óbvio, igualmente, que sei de que lugar estou falando.
Discordo, no entanto, de Coelho quando diz que do livro resulta a admissão por parte do autor de que o tropicalismo foi uma "revolução ilusória" -e eu não estaria tão certo de que tenha sido (esqueçamos a impropriedade do termo revolução), ainda que meu texto no Mais! tratasse exatamente de realçar a questão da institucionalização do movimento: a clássica passagem da rebeldia à conciliação, em perspectiva histórica. A entronização da alegria rebelde pela preguiça do consenso.
Caetano não é apenas um compositor inteligente. É também um intelectual, um homem culto, uma pólvora que Coelho parece ter descoberto anteontem. Sempre foi um forte polemista.
Como tal, utilizou -e utiliza- sistematicamente a tática retórica dos exageros com o intuito de demarcar posições ou chamar a atenção para aspectos que o debate geral tende a desconhecer, minimizar ou supervalorizar. Poderia fazer um inventário de suas opiniões desmesuradas.
É dele, no livro, a seguinte frase sobre a tática tropicalista em relação a Chico Buarque: "Claro que havia uma agressividade necessária contra o culto unânime a Chico Buarque em nossas atitudes".
Por que a agressividade era necessária? Por que era preciso ter atitudes contra o "culto unânime a Chico Buarque"? Não era ele um artista do bem? Um grande compositor? Não é a fonte que Caetano diz hoje, parecendo ser modesto, ter sempre perseguido em seu ofício?
Pois bem, de minha parte considerei interessante (pelo visto erroneamente, e já estou até pensando em escrever um artigo contra mim mesmo) criar alguma dissonância no previsível "culto unânime" em torno da sucessão de eventos ligados ao tropicalismo (o livro "Verdade Tropical", o CD "Livro", o CD "Tropicalismo 30 Anos", um especial da Globo).
Não fiz uma crítica ao livro propriamente. Pretendi levantar questões sobre leituras bobocas do vanguardismo tropicalista (ninguém reclama de elogios, mesmo que sejam errados e idiotas), sobre a diluição da herança do movimento fora de seu contexto original, num quadro de normalização cultural e desmobilização ideológica e, enfim, incitar o autor a falar sobre sua própria poderosa unanimidade (a idéia inicial era ter feito uma entrevista a respeito, o que não foi possível, como não foi possível, apesar de renovados convites, contar com a colaboração dos professores José Miguel Wisnik e Roberto Schwarz).
Embora tenha usado alguma (des) necessária dose de agressividade, o fiz, intimamente, com humor (falar dos dotes de Caetano para a divindade, por exemplo, para mim era uma piada), sem esconder a admiração que tenho pelo artista.
Sobre toda essa confusão, eu já deveria saber que é muito difícil problematizar publicamente temas ligados a Caetano. Aqui, como diz o jeca total Jorge Salomão, ou é zero ou é mil. Ou boneco de ventríloquo ou detrator -agora também jornalista corrompido, psicanalizado à distância. Não me encaixo em nenhuma dessas categorias, nem creio que o jornalismo deva encaixar-se.
Parafraseando uma passagem de "Verdade Tropical", penso que o artista não deve estar mesmo disposto a crer na complexidade das boas intenções dos jornalistas que ajudam a criá-lo.

PS - Péricles Cavalcante tem razão: "Livro" é a melhor resposta. Já o CD comemorativo... Bem, é genial.

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