São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Autofagia ou sadomasoquismo?

ROBERTO CAMPOS

A febre asiática, que não é mais humilhação dos subdesenvolvidos, pois começa a atingir o Japão, exige uma aceleração de nosso calendário reformista. Havia no Executivo e no Congresso uma certa complacência, criada pelo ambiente pré-eleitoral, que aumenta a aversão ao risco das mudanças. Hoje, nosso "tempo de ajuste" se encurtou dramaticamente.
Temos que voltar à norma prudencial de Mário Henrique Simonsen: o déficit sustentável em conta corrente não deve exceder de 2% a 2,5% do PIB. Os asiáticos conseguiram financiar por bastante tempo déficits muito superiores, por terem taxas de poupança interna que são o dobro das da América Latina e por terem sido menos maculados pela "cultura do calote". Mas essa margem de tolerância foi anulada pelo atual empoçamento da liquidez internacional. E por evidências de desperdício da poupança asiática em especulação imobiliária e projetos industriais paranóicos. O dever de casa comum a asiáticos e latino-americanos passou a ser a redução rápida dos déficits externos e, no caso brasileiro, uma redução paralela do déficit interno do setor público. A agravação do risco financeiro do Brasil proveio sobretudo da coincidência dos déficits. Se o déficit externo (4,3% do PIB) é quase da mesma magnitude do déficit interno do setor público, segue-se que o endividamento externo está financiando não a expansão produtiva do setor privado, e sim simplesmente "acomodando" o inchaço do Estado.
Não há disputa sobre a urgência e os objetivos do "pacote 51". Há dúvidas sobre sua composição. Não seria um "pacote de privatizações" mais rápido e eficaz que um "pacote tributário"?
Produzido num fim-de-semana hiperativo, por burocratas cansados, diria um psicanalista que o pacote apresenta sintomas de autofagia e sadomasoquismo. Autofagia, porque sua eficácia depende de um rápido desaquecimento da economia, o que por sua vez provoca frustração das expectativas de receita. Sadomasoquismo, porque os mesmos objetivos -alívio fiscal e cambial- poderiam ser alcançados por meios alternativos, por intermédio da ampliação e aceleração do programa de privatizações. Contemplemos os blocos componentes do esforço fiscal visando a um ajuste de R$ 20 bilhões:
Do aumento planejado de receitas de R$ 6,7 bilhões, apenas cerca de um terço (R$ 2,6 bilhões) exige ação legislativa do Congresso Nacional, por meio do aumento do IRPF (R$ 1,2 bilhão), do IPI sobre veículos e bebidas (R$ 0,8 bilhão) e da redução de incentivos (R$ 0,6 bilhão). O restante do ajuste -compreendendo a elevação de preços do petróleo e das taxas de embarque e dividendos de bancos oficiais, assim como variados (e desejáveis) cortes de gastos- está na esfera do Executivo. A indagação pertinente é por que essas providências não foram tomadas antes, para "prevenção" da crise, e não apenas agora, para "correção" de seus efeitos.
Um "pacote de privatizações" teria sobre um pacote tributário as seguintes vantagens: a) obtenção rápida de receitas, enquanto o fluxo de impostos ocorre ao longo do ano; b) alívio cambial imediato, na proporção do influxo de capitais estrangeiros; c) ganhos de eficiência operacional. Por contraste, os efeitos de um pacote tributário sobre a balança de pagamentos são indiretos: o desaquecimento reduziria a demanda de importação e liberaria excedentes exportáveis. Mas as exportações dependem da preservação da capacidade competitiva, negativamente afetada pelas desvalorizações asiáticas. No caso das privatizações, o efeito cambial é direto e imediato, e a receita fiscal não está sujeita a surpresas negativas resultantes da queda da atividade econômica ou da dificuldade de impor disciplina às empresas estatais e a Estados e municípios. Naturalmente, os recursos oriundos da venda de ativos deveriam ser aplicados no cancelamento de dívidas, aliviando a carga de juros sobre o Orçamento.
Os candidatos mais plausíveis para um pacote de privatização seriam BR Distribuidora, Embratel e Furnas. No balanço de 1996, a BR Distribuidora figura com um patrimônio líquido de R$ 1,15 bilhão. Seu valor de mercado, por se tratar de setor atraente e lucrativo, é estimado em R$ 1,5 bilhão e R$ 2 bilhões, dos quais mais da metade corresponderiam à participação acionária do Tesouro na Petrossauro. O valor de mercado da Embratel é estimado entre R$ 5 bilhões e R$ 7 bilhões, dos quais uma quarta parte caberia ao Tesouro como acionista da Telebrás. Furnas, se vendida integralmente, valeria entre R$ 7 bilhões e R$ 9 bilhões, cabendo ao Tesouro cerca de 70%. Assim, com a aceleração de apenas três privatizações, seria possível obter um efeito favorável, fiscal e cambial, equivalente pelo menos ao dobro do visualizado no "pacote tributário". Isso sem os vazamentos autofágicos e sem o sadomasoquismo recessivo da proposta governamental, que agravará o desemprego sem contribuir fundamentalmente para a reestruturação do Estado.
O grande argumento dos que insistem no pacote tributário de R$ 2,6 bilhões é a queda da demanda dos investidores num mercado bursátil deprimido pelas repercussões da crise asiática. Entretanto um fato relevante e encorajador é que, se o Brasil é percebido como um elevado risco "financeiro" de curto prazo, retém sua qualidade de "risco econômico" aceitável no médio e longo prazo. É que as perspectivas dos investidores "voláteis" são diferentes da perspectiva dos investidores de longo prazo. Aqueles prezam sobretudo a rentabilidade imediata; estes dão mais atenção ao fluxo de receita estável no tempo e relativamente imune aos ciclos econômicos, qualidades típicas dos investimentos na infra-estrutura.
A crise asiática já teve um subproduto útil. Diminuiu a resistência na Câmara à aprovação da reforma administrativa. E talvez melhore as chances de tramitação em "fast track" da reforma previdenciária, a qual infelizmente apenas reduz, sem estancar, a hemorragia do INSS. Recentemente, o Poder Executivo apresentou pela primeira vez idéias globais sobre a reformulação do sistema tributário. Isso torna ainda mais desaconselhável o pacote fiscal de emergência, que cria atritos desproporcionais ao seu rendimento e perpetua a tradição de pacotes de fim de ano.
A psicologia dos políticos indica que continua válido o brocardo do dr. Samuel Johnson: "Nada concentra mais a mente que a visão do patíbulo."

Texto Anterior: Senso de oportunidade
Próximo Texto: Moreira Franco tentou empregar cunhado
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.