São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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O diretor da natureza indomada

MÁRCIO SOUZA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Silvino Santos foi o cineasta do grande dinheiro que sempre girou na Amazônia. E, se lembrarmos o que ocorreu logo depois do assassinato de Chico Mendes, quando todos os grandes estúdios de Hollywood desembarcaram em Xapuri, tentando conquistar os direitos de filmar a vida do sindicalista assassinado, veremos também que cinema e escândalo social sempre andaram juntos na grande região.
Hollywood em Xapuri nos remete a um outro escândalo, que é o escândalo que vai criar o cinema na Amazônia e, por conseguinte, produzir Silvino Santos. O escândalo é o do rio Putumayo.
Quase cem anos antes de Chico Mendes, um empresário de muito dinheiro, Júlio Cesar Araña, também conhecido no Peru, sua terra natal, como "el sócio de Dios", mantém os índios Huitoto escravizados em seu seringal. Pior, os índios são usados como joguetes nas mãos de capatazes sádicos, que torturam e matam por prazer e tédio. Um americano curioso denuncia tudo em Londres, é o escândalo total.
Aristocratas da Casa dos Lordes aparecem entre os sócios de Araña, um processo judicial é instalado. O negócio milionário vai afundar. Antecipando-se numa jogada de grande perspicácia, Araña imagina que, se um filme -arte nascente em 1917- fosse apresentado perante o tribunal, um documentário mostrando que o seu seringal era na verdade um esteio da civilização ocidental em plena selva equatorial, certamente seria absolvido, porque o cinema era a expressão da veracidade.
Em Manaus, ele encontra o imigrante Silvino Santos (1886-1970) ganhando a vida como fotógrafo. A vida era dura na capital dos barões do látex, a cidade mais isolada e mais cara da cristandade. Sem pestanejar, manda o Silvino estudar nos Estúdios Pathé, em Paris. E o fotógrafo minucioso desabrocha no caudaloso cineasta.
Esse Silvino Santos, portanto, só foi possível porque o período em que ele viveu fazia da Amazônia um grande centro de riqueza, de dinheiro fácil, o palco de uma civilização que depois desapareceu, mas que possuía capacidade cultural para experimentar tudo o que tinha de modernidade, inclusive a mais moderna das linguagens que era o cinema. Silvino Santos, por isso mesmo, é o artista mais importante da Amazônia nesse período. E, como praticamente não existiu cinema na Amazônia depois dele, ele é inteiro o cinema da Amazônia. Ninguém mais saberia ver a região amazônica como ele, sem parti pris, sem nenhum preconceito, sempre com os olhos deslumbrados daquele garoto que um dia, na aldeia em Portugal, abriu o livro de escola e viu a foto do rio Amazonas.
Silvino Santos conseguiu ser mais que um pioneiro, justamente pelo talento extraordinário e pela capacidade de inventar uma linguagem ainda inexistente, de estabelecer de forma instintiva uma gramática do cinema.
Como artista, ele supera as limitações impostas pelo grande dinheiro com que esteve sempre envolvido e supera as limitações do próprio cinema, limitações técnicas e limitações da província que costuma esquecer aqueles que fazem com comprometimento as coisas. Silvino Santos teve essa capacidade extraordinária de superação. Não é de surpreender que esteja vivo, entronizado mais e mais no nicho dos poucos inventores da cultura brasileira. E mais, o cinema dele é um cinema que ainda precisa ser contextualizado no processo generativo do cinema nacional. Certamente essa condição final vai dar a grandeza de Silvino Santos, embora na Amazônia a sua grandeza já seja um fato consumado. Mas o cinema brasileiro tem que se reencontrar em Silvino Santos, porque ele tem enormes afinidades com Humberto Mauro. Ambos são fundadores e alicerces do cinema nacional. Tanto quanto Mauro, Silvino era um apaixonado ingênuo e um virtuose.
Como vimos, o cinema surgiu em sua vida como uma encomenda qualquer. Em 1921, ele dá início à produção de seu primeiro longa-metragem, "No País das Amazonas", ainda hoje uma obra-prima de síntese em surpreendente linguagem moderna.
"No País das Amazonas" foi produzido pelo empresário J.G. Araújo, um dos mais poderosos comerciantes de Manaus, como propaganda de sua firma a ser apresentada na Exposição do Centenário da Independência, na capital federal, em 1922. E o interior da Amazônia, sempre tão guardado, resgatava-se pelas imagens do filme. Visto hoje por um público menos deslumbrado pela técnica cinematográfica, mostra-se um filme de ritmo moderno, muito próximo do sonoro em sua narrativa fluente e sem a ingenuidade dos filmes de vistas dos tempos primitivos da cinematografia.
A câmara de Silvino Santos não era passiva. Na sequência dos arpoadores de pirarucu, por exemplo, ela invade o ambiente. Enquanto o arpoador está imóvel, de pé na canoa, esperando que surjam na água sinais do grande peixe. Silvino Santos imobiliza a câmara. Lançado o certeiro arpão, as imagens disparam em rápidos cortes. Panorâmicas e detalhes vão mostrando a mecânica da luta. Silvino ordenava sem interpor a consciência de espetáculo do cinema, e fazia espetáculo com o próprio suceder do documental, sem artifícios ou truques. Por isso é um filme expositivo sem ser monótono. De seus planos gerais, abrangendo o cenário, ele vai mostrando o grandioso espetáculo dos homens esquecidos nas margens dos rios. Sumariando o visto, os acontecimentos, tomando em conta o sentido que isso tudo possuía em relação à sociedade da borracha. "No País das Amazonas" é um espetáculo antes de ser uma exposição.
No final da vida, quando conheci Silvino Santos, ele praticava o espiritismo e, talvez para impressionar aqueles jovens que iam ao seu escritório falar sobre cinema, dizia-se comunicar com os mortos. Um dia estavam os jovens conversando, e ele disse: "Um espírito me contou". Os jovens pensaram que fosse um espírito qualquer do Amazonas, o Araña ou o J.G. Araújo, mas simplesmente o espírito com o qual ele tinha falado recentemente era Murnau. Sim, o Murnau de "A Última Gargalhada" e de "Tabu".
Silvino Santos tentara impressionar a rapaziada, mas ao perceber que aqueles adolescentes conheciam cinema mudo, ficou impressionadíssimo. E naquele momento, falando de Murnau, Silvino Santos confessou sua admiração por filmes como "Aurora" e "Nosferatu", o que gerou perplexidade, porque o parentesco mais óbvio de Silvino seria o documentarista Flaherty.
Na perspectiva do tempo, observando algumas cenas de "No País das Amazonas" e depois comparando-as com as imagens de "Tabu", recentemente restaurando de forma primorosa pela Universidade da Califórnia, é possível perceber que o deslumbramento de Silvino Santos pela Amazônia era do mesmo quilate do deslumbramento de Murnau diante da natureza indomada dos mares do Sul. É engraçado isso. Apenas com um atraso de 40 anos desde nosso encontro, assistindo ao filme de Murnau, é que eu fui perceber que a comunicação espiritual de Silvino com Murnau era total. Uma visão muito parecida de cinema.

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