São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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O Brasil de língua presa

VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Qualquer observador atento à confusa cena contemporânea brasileira ficará impressionado com a espantosa incidência, na TV e fora dela, de gente que se expressa com língua presa, inclusive líderes da classe operária industrial de São Paulo. Além de cantores, locutores, conjuntos de rock, pagode, funk, rap, ripirop, Raça Negra, Claudinho e Bochecha, Negritude Júnior, Netinho, Banda Beijo, Mil e Uma Noites de Amor etc.
Há em nossa atmosfera acústica alguma coisa pateticamente infantil, regressiva, abortada, pedindo proteção e água. Dir-se-ia que crioulo quer colinho. Mimo. Dengo. Da parte de um pai que não aparece, ou que o rejeita, como dizia Darcy Ribeiro tanto do mameluco quanto do mulato.
É que sempre faltou pai ao povo. Povo órfão. Somos um país de mãe solteira, quando não estuprada. Diuturnamente ouvimos manifestação de minoria emocional por meio de um discurso do Brasil menino. Menino ferrado. Eis a genealogia da moral cotidiana: o amálgama da sintaxe agressiva da TV com jeito neném de ser. Meninos de 12 anos nos morros do Rio de Janeiro se engazopam de tranquilizantes para pegar no sono.
Os Mamonas Assassinas são os filhos do Faustão com Xuxa. Estes, por sua vez, funcionam como os tios e as tias dos Tiriricas com pirulitos e língua presa. E Gugu Liberato? Gugu é o padrinho dos órfãos e amantes, o Sõren Kierkegaard mendigando cesta básica.
A proliferação intensiva e extensiva da língua presa na sociedade brasileira é o reflexo do espírito da época e seus efeitos infantilóides nas vozes que molduram o derrelito musical. O público ouvinte que se comove com esse som é também infantilizado, não importa a idade do cidadão ou cidadã.
E, então, foneticamente o que se ouve? Não é apenas o "vochê" que o cantor Jorge Bem notabilizou num canção de sucesso, tampouco se identifica inteiramente ao léxico estropiado do cabaré da Xuxa, que usa e abusa do xis, ou senão com tchan lacucaracho à Ualter Mercado, o taumaturgo videovidente que insiste de modo fiufiu na televisão: "Ligue djá!". Refiro-me à língua presa no céu da boca do brasileiro, ao tatibitati à beira da afasia, pronunciada pela dicção banguela. A ausência de dentes torna os fonemas quase indiferenciáveis um do outro, o que lembra o impossível diálogo de cachorro com papagaio. Até mesmo o presidente da República, a fim de exaltar as conquistas populares do Plano Real, declarou que o maior mérito de seu governo foi ter aumentado o consumo de dentadura, quiçá parafraseando o célebre dizer bíblico: todo trabalho do homem é para a sua boca.
Os grandes intérpretes da civilização brasileira, a exemplo de um Roger Bastide, de um Gilberto Freyre, de um Luis da Câmara Cascudo, têm sublinhado o papel da boca entre nós. De todos os órgãos do corpo, a boca é sem dúvida o mais importante. Em tudo há boca. Sem esquecer evidentemente o ouvido, não apenas porque o Brasil, ágrafo e analfabeto, careça de escola; mas sim porque somos o resultado do cruzamento de três raças falastronas, tanto que um arraigado costume nosso é todo mundo falar alto e ao mesmo tempo, sem que ninguém seja ouvido. Família do barulho.
Certa feita no Leme, Rio de Janeiro, eu perguntei a Nelson Rodrigues se o homem brasileiro sabia ouvir. Voz cavernosa e pausada, ele me respondeu que o brasileiro só queria ouvir a si mesmo: o homem brasileiro é um histérico! Se Karl Marx tivesse nascido em Taubaté, ele teria sacado o modo de produção acústico, juntando boca e ouvido para alcançar o conhecimento da totalidade cultural. Burrice seria levar na pilhéria a expressão "emprenhar pelos ouvidos". O homem brasileiro do povo acredita piamente que Cristo saiu do seio da Virgem Maria como entrou: by ouvido. Daí resulta o motivo da gravidez "sine concubito", tal qual a vemos no belíssimo filme de Jean-Luc Godard, "Je Vous Salue Marie", em que a moça virgem de repente é emprenhada ouvindo Johann Sebastian Bach. No Brasil colonial, padre Antonio Vieira pregava à indiada do Maranhão: Deus é Deus ouvido, não visto. É por isso que andamos às vozes.
Errei na minha juventude paulistana por ter escrito "De Olho na Fresta". Deveria ter feito outro livro. "De Ouvido no Freezer". Audição congelada. O "auditus" pega mais fundo do que o olho, incluindo o olho gordo seca-pimenteira da inveja.
Mais tarde, na Paraíba, eu conheci um psicanalista que dizia, com base na experiência analítica, que homem casado ou mulher casada, depois de determinado tempo, procurava amante por causa da saudade do coito falado, tagarela, radiofônico. Evoco de novo o testemunho do saudoso Nelson Rodrigues: o sexo mudo é o sexo das cabras. É triste, mas profundo.
O equivalente acústico da língua presa é uma espécie de entropia da surdez progressiva, por intermédio da soma alucinada de ruído interno e externo, cuja consequência linguística pode ser auferida pela anacolutia mental da comunicação na sociedade brasileira. Anacolutia generalizada. O reinado do anacoluto. O vício de linguagem. Do grego "anakolonthon": frase quebrada, discurso em que o antecedente nada tem a ver com o consequente. É a fala que não dá seguimento entre uma idéia e outra.
O anacoluto invadiu a Senzala e a Casa Grande, o Palácio do Planalto e o barraco inóspito. Recurso onipresente na comunicação contemporânea, o anacoluto é o reflexo do domínio da telenovela deste 1965, o ano da implantação da videoesfera na cultura brasileira, isto é, o complexo da TV, do clip, do formato, do telemático. Isso que dizer que a paidéia da telenovela substituiu a letra da escola, de modo que o predomínio da oralidade popular (o triunfo do "homo loques" sob o "homo scribens") se faz sob a égide da aculturação boçal made in TV.
Em seu ódio ao jornal (ódio, de resto, que o nosso José Guilherme Merquior não entendia), Walter Benjamim acusou a paginação como um procedimento que exibe a falta de conexão entre uma notícia e outra, procedimento atomizador que poderia ser encarado como precursor legítimo da anacolutia mental do capitalismo videofinanceiro. Recentemente Régis Debray, em vários livros sobre midiologia, estabeleceu a conexão entre marxismo=escola=livro=panfleto=jornal e, de outro lado, TV=neoliberalismo, defendendo a tese de que a educação foi um mito de esquerda (cada escola que se abre é uma cadeia que se fecha), enquanto a comunicação é um mito de direita: a televisão nasce nos EUA.
A videoesfera é a grande arma do capitalismo, como se a revolução proletária fosse um conceito pré-televisivo. A televisão veio salvar o capitalismo, tanto que a própria crise do marxismo é indissociável da emergência da videoesfera durante a década de 50, cujo símbolo é o "american circus" exportado para o mundo inteiro.
Há décadas lidamos com a idéia de que o principal legado da Semana de 22 é a oralidade da língua como valor literário. Acontece todavia que o elogio da oralidade ou do coloquial ficou complicado e problemático a partir da consolidação da TV (o jornalista televisivo é o coveiro midiático do professor) com a sua tirania agrafocrática. Sem querer abusar da construção anagramática, com apelo humorístico ao trocadilho, poder-se-ia afirmar que estamos vivendo sob o signo do analanacoluto do tucanus style, o qual se seguiu ao popanalcoluto inaugurado por Fernando Collor em 1989.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências socias da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.

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