São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A percepção dos 'poros da sociedade'

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Até há pouco tempo a figura do imigrante era rara -para não dizer ausente- na literatura brasileira. O que tem uma explicação. As primeiras gerações, que chegaram ao Brasil há escassos 150 anos, estavam mais preocupadas em ganhar a vida do que escrever. Além disto estavam limitadas, em seu acesso à palavra escrita, pelo idioma que nem sempre dominavam, ou pelo menos não o dominavam literariamente falando. São os descendentes desses recém-chegados, os filhos, os netos, que começam a sentir a necessidade de contar, sob forma de ficção ou de ensaio, a sua experiência. Que é sempre reveladora. É um olhar menos despreocupado, porém mais penetrante, que o olhar do nativo; um olhar que vê, além da aparência, aquilo que Marx chamava de "poros da sociedade", os minúsculos pertuitos onde se escondem as contradições e, ocasionalmente, as oportunidades.
Há uma outra razão para valorizar a literatura de imigração; ela se inscreve na recuperação do passado histórico, recuperação esta que, neste final de século, se constitui em resposta à perplexidade expressa, no período pós-autoritarismo, pela questão: que país é este? Ficção histórica e biografia são, por isso, dois gêneros em alta.
"Memórias de um Vivente Obscuro" foi o título que Matinas Suzuki deu à sua autobiografia. Este "obscuro" corre à conta da modéstia do autor. Médico e político conhecido, o doutor Suzuki fez, ao longo de sua vida, numerosas amizades. Em termos de medicina, por exemplo, o livro é um verdadeiro "quem é quem", sobretudo no que se refere a São Paulo. Médicos destacados, como Benedito Montenegro e Isaías Raw ali aparecem, como personagens de histórias saborosas. O doutor Suzuki é um grande contador de histórias; num estilo simples, coloquial mesmo, vai envolvendo o leitor naquilo que se constitui em verdadeira saga pessoal.
As memórias de Matinas Suzuki se distribuem, de forma cronológica, por três tipos de vivências. Primeiro, as vivências de filho de emigrantes, Kido-San e Suna-San. Gente pobre, que lutou muito para sobreviver, tanto no campo como na cidade. Figuras verdadeiramente comoventes, na sua autenticidade e humildade. Suzuki conta que, ao receber o diploma de médico, a mãe passou a tratá-lo por "senhor". Por mais que o filho insistisse, foi inútil: "Suna-San morreu aos 80 anos... E me tratou por senhor e doutor até a morte".
Há passagens cômicas, como aquela em que relata a origem de seu nome. Como muitas vezes acontecia com imigrantes, quem tomou a decisão a respeito foi o escrivão "... metido a erudito ou latinista de seminário, entrou no meio da indecisão daquele japonês rural". Já que o garoto tinha nascido às cinco da manhã, deveria receber o nome de Matinas: "Significa as orações da madrugada, o breviário das orações matutinas". E Matinas ficou.
A vida era uma fonte de surpresas para o jovem nissei de Nova Granada (SP). Criado no campo, ele não conhecia, por exemplo, privada com descarga -e quando a viu funcionar, assustou-se: "O que vi foi o desabar de uma cachoeira de água ruidosa, parecendo que ia transbordar do vaso e inundar a casa. Não fugi porque o espanto deixou-me paralisado".
Matinas Suzuki morou em Jaboticabal e depois em São Paulo, quando cursou a Faculdade de Medicina da USP. Suas aventuras como adolescente -sobretudo na zona do meretrício paulista- não são menos interessantes do que as da infância. E suas histórias da faculdade e, depois, da profissão médica são um retrato muito revelador da medicina brasileira, com suas glórias e suas misérias. Na época da faculdade, uma outra vocação emergiu: a do ilustrador. Retratos de pessoas famosas tornaram-se uma especialidade dele, e vários foram publicados na imprensa. O livro conta, aliás, com várias ilustrações do autor.
Médico, Matinas Suzuki foi trabalhar em Barretos, onde reside. Como muitas vezes acontecia com médicos no interior, resolveu experimentar a política. "Lacerdista convicto", como ele próprio se define, ingressou na antiga UDN e aí se viu envolvido nas intrigas da política local. Uma briga maior ele a comprou com partidários do regime militar, quando se recusou a assinar uma moção de apoio às medidas de exceção.
A esta altura, fica bem evidente a integração do filho de imigrantes à vida brasileira. O que é uma das coisas boas do Brasil. Não somos o "melting pot" que os governantes norte-americanos preconizavam, nem é bom que o sejamos -afinal, as características grupais são parte de nossa identidade-, mas podemos, sim, falar de uma brasilidade compartilhada. "Memórias de um Vivente Obscuro" fala da trajetória em direção a essa brasilidade. É basicamente uma obra da memória, mas daquela memória que começa a se transformar em história, e que por isso ajuda-nos a responder à questão tão inquietante quanto fascinante: que país é este?

Texto Anterior: FICÇÃO; NÃO-FICÇÃO
Próximo Texto: O labirinto das estradas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.