São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997
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O labirinto das estradas

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

No ponto inaugural da literatura brasileira estão crônicas de viajantes, muito em moda pelos idos dos séculos 15 e 16; relatos detalhados e eufóricos cujo ímpeto elogioso da "brasilidade" repetiu-se sob outras formas a cada século seguinte, do barroco ao modernismo. À véspera de seu meio milênio de vida, as paisagens neste país parecem já não arrebatar tanto os seus autores. Ao contrário, floresce uma espécie de morno desencanto.
Talvez se trate de fenômeno internacional com 20 ou mais anos de vida -final de século, crise das ideologias, esfarelamento de raízes-, mas, como aqui toda uma geração de desiludidos começa a pôr a cara para fora somente nestes anos 90, ele salta mais aos olhos.
Desde o romance "Cemitério de Navios" (1993), seu primeiro livro, o carioca Mauro Pinheiro se enquadra nesse perfil. Suas criaturas vivem nas estradas, pegando caronas, viajando de ônibus, frequentando motéis ou bares de postos de gasolina, dormindo em estações rodoviárias. E não é a alegria de circos mambembes que elas encontram, mas sim plantas queimadas na beira da estrada, no máximo algumas bananas verdes.
Neste segundo livro, "Aquidauana e Outras Histórias sem Rumo", a atmosfera é a mesma, definida, aliás, com clareza por Lenda, mulher de "olhos sombreados", a qual, no conto que dá título à coletânea, faz um exercício furtivo de metalinguagem e afirma:
"Percebeu que não aconteceu sequer uma verdadeira história de amor até aqui? Só estradas inúteis, desencontros, criaturas sem norte...". É isso mesmo. "As viagens também serviam para que não conseguíssemos encontrar quem procurávamos", afirma o narrador no conto "Viagem a São Paulo".
Os protagonistas dos dez contos aqui reunidos cruzam-se ou complementam-se uns aos outros em seus enredos, ainda que cada narrativa seja também uma peça independente. De repente, um personagem principal de um conto surge como totalmente secundário no outro; assim por diante. É uma demonstração, da parte do autor, de que, na verdade, os seres passam, mas suas histórias, como o labirinto das estradas, nunca terminam.
Jovens e marginalizados, os personagens de Pinheiro cometem pequenos crimes, zanzam à toa, sofrem agressões. Lembram bastante aquele casal triste e desesperado que, na última parte do filme "Pulp Fiction" (de Quentin Tarantino), atrapalha-se todo na tentativa de assaltar uma lanchonete.
Compõe-se, no geral, um retrato de desolação sobre o qual é impossível não captar a sombra de autores como os americanos Raymond Carver e Jack Kerouac ou, no Brasil, João Gilberto Noll (observação esta feita corretamente pela própria editora, diga-se, para evitar questões de crédito).
Cabe nota, porém, que há uma diferença de estilo entre o primeiro e o segundo livro. "Aquidauana" é mais rarefeito no uso de figuras de linguagem; direto e simples, enfim. "Cemitério de Navios" é ousado, mais belo, possui, como afirma na apresentação o filólogo Antônio Houaiss, "uma harmonia de linguagem que tem o pudor de ser canônica, para ganhar informalmente emoção, sentimento, verdade".
Apesar disso, talvez não seja equivocado dizer que, paradoxalmente, a forma menos rebuscada adotada por Mauro Pinheiro neste segundo livro, "Aquidauana", combina mais com os seus enredos e personagens do que a anterior e que, portanto, estamos, na verdade, diante de uma promissora depuração.

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