São Paulo, domingo, 30 de novembro de 1997 |
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A Europa na encruzilhada
ANTONIO NEGRI
A socialdemocracia e as correntes sociais do pensamento cristão (católico e protestante) conseguiram sustentar este modelo ao longo das crises dos anos 70 e sobretudo através da ebriedade yuppie dos anos 80, e, hoje, nos grandes países europeus, este modelo é fórmula, se não unânime, seguramente hegemônica. Além do concertamento, o modelo renano também prevê o recurso ao Estado, não tanto como mediador, mas sim como defesa dos desequilíbrios induzidos pela mundialização. Não há dúvidas de que o nascimento da Europa da moeda única e, em perspectiva, a formação da Europa política brotam da necessidade de se reforçar este modelo, garantindo, assim, a paz social e o cenário de um desenvolvimento justo. Nada de mais diferente, portanto, do "capitalismo liberal" que manda nos EUA e que, epidemicamente, se mundializou a partir da queda do "mundo do socialismo real" . O nosso problema (não só enquanto europeus, mas enquanto cidadãos do mundo) é, no entanto, o de nos perguntarmos se este modelo renano europeu poderá sustentar-se e, eventualmente, expandir-se nas próximas décadas como alternativa ao estadunidense. E é diante desta pergunta que um certo pessimismo se levanta nas elites do "capitalismo renano" e, em geral, na cultura européia, que, até aqui, deu mão forte à realização de seus valores. Por quê? Porque hoje as condições produtivas que o "capitalismo renano" tem de controlar já não são as mesmas em que este se formou: hélas, tudo parece caminhando para a direção oposta! No que dizia respeito ao concertamento, o modelo renano, efetivamente, pressupunha, de um lado, uma casta de capitalistas industriais, diretamente empenhados na produção, e, do outro lado, uma classe de operários, massificados nas fábricas e altamente sindicalizados. Agora, ao contrário, tem de pressupor capitalistas financistas e mundializados, e operários cada vez menos massificados e sindicalizados! Até no que concerne às projeções de solidariedade e cidadania, as condições se transformaram: o ritmo da inovação produtiva, ou seja, o progresso tecnológico, no pós-fordismo, gera desemprego; enquanto a pressão neoliberal, triunfante no "mercado mundial", determina, contra a solidariedade registrada no "Welfare" nacional, mecanismos de privatização dos dispositivos da "seguridade social" que já se tornaram irresistíveis. O mercado do trabalho, além disso, está transtornado pelos novos fluxos migratórios. Como resistir a estas pressões? Como manter o sentido do projeto renano e como construir, de novo, condições e instrumentos capazes de manter o espírito alternativo à ofensiva neoliberal? Até agora, as correntes mais sensíveis do capital renano excogitaram, na Europa, duas respostas a este desafio. A primeira procura responder à perversa sequência "progresso tecnológico/desemprego crescente" por meio de uma redução generalizada do horário de trabalho. Uma segunda resposta centra-se na construção de uma área monetária (a Europa do "euro") que deveria permitir uma relativa independência (se não chegar a constituir uma posição hegemônica) na regulação da forma, dos modos, das medidas, das relações sociais do desenvolvimento. Na realidade, poucos acreditam que sobre estas linhas seja possível resolver o problema e fixar as características alternativas do modelo europeu. Em busca de outras lógicas, a discussão torna-se cada vez mais acirrada. Deste ponto de vista, parece interessante o último livro de André Gorz ("Misères du Présent - Richesse du Possible", Paris, Galilé, 1997). Apesar do folclóre utópico de seu escrito, a contribuição de Gorz está totalmente dentro da ideologia do "capitalismo renano" e mede corretamente o seu déficit atual. Sua proposta é bastante simples: "sair da sociedade salarial" (que as sequências pós-fordistas "progresso-desemprego" já destruíram), garantindo, por consequência, de modo incondicionado, a renda de todo o cidadão, redistribuindo nessa base o trabalho, valorizando o que agora não é valorizado (essencialmente o trabalho no terceiro setor dos serviços sociais). Isso tudo por meio de uma política, junto aos trabalhadores, de incitação à "multiatividade" , criando-se, desse modo, novas possibilidades de organização da solidariedade. Tudo isso, naturalmente, por meio do Estado. A nova formulação do modelo renano não poderia ser mais completa. Ao concertamento dos grandes corpos sociais e produtivos substitui-se aqui um projeto de mutualismo e cooperação que deveria se alastrar entre os indivíduos. Com isso o modelo renano volta às suas origens, cristãs e solidaristas, socialdemocráticas e cooperativas (aquelas origens tão bem descritas pelos sociólogos e filósofos do neokantismo, entre os dois séculos, em cuja esteira ajusta-se o pensamento de Gorz). Esta "utopia débil" será suficiente para devolver impulso ao modelo renano e a repropô-lo como alternativa ao mundo neoliberal? Que me seja permitido um certo pessimismo. A operação de Gorz tem um quê de remendo. Mas uma coisa interessante ela tem: em sua debilidade revela o fato de que, com boa probabilidade, o patamar de irreversibilidade da crise do modelo renano/europeu foi superado. Este é incapaz de renovar os próprios parâmetros de referência e indicar, nos pontos altos da sociedade mundializada, as forças que têm interesse na transformação. Gorz incita os indivíduos, enquanto cidadãos, a se tornarem os promotores de uma revolução cultural que prepare a renovação da política social. Esta incitação não é demasiado confusa e um tanto cômica? Talvez seja melhor esquecer o modelo Europa -ainda que oportunamente modificado- e concentrar a nossa atenção antes nos fluxos dos migrantes, assim como na nova força-trabalho da produção imaterial, nos operários dos serviços sociais, assim como nos marginalizados e extralegais dos guetos metropolitanos: temos aqui muito mais criação e prefiguração do porvir do que qualquer reformulação comportada do modelo Europa poderia nos proporcionar. Tradução de Roberta Barni. Texto Anterior: Coluna Joyce Pascowitch Próximo Texto: A lógica da liberdade Índice |
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