São Paulo, terça-feira, 2 de dezembro de 1997
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A inutilidade dos debates que discutem futebol

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

São horas inteiras de concessão pública em canais de TV -de privilégio que o governo concede a uma empresa para que explore um serviço de utilidade pública- para homens discutirem futebol.
São os "Grandes momentos do esporte", os "Show do esporte", os "Cartão Verde", um blablablá sem fim em programas de televisão cujo debate é sobre se o time X ou Y teve vitória merecida. Sobre se o gol mais bonito foi o do jogador fulano ou o do jogador sicrano.
Homens barbados tratando futebol, em mesas-redondas, como tema importante, matéria educacional, questão de sobrevivência da humanidade.
Que utilidade pública há nos destinos da bola, na estratégia, na eficiência da técnica, na experiência do técnico, no drible do jogador? Mas eles insistem na discussão entediante: assistem em replay os jogos do dia, comentam os melhores momentos, os "lances", os pênaltis, os erros do juiz.
Um tempo perdido, um espaço de utilidade pública desperdiçado em futilidade que só interessa a uma minoria de fanáticos por futebol -ou será uma maioria, nunca se sabe.
Se já é difícil compreender a supervalorização do futebol pelo homem brasileiro, é preciso enorme esforço de compreensão e paciência para aceitar que esse esporte vire tema de discussão em horário nobre de televisão.
Um tempo desperdiçado, que serviria a transmissões que preenchessem lacunas educacionais, a defasagem cultural generalizada -ainda querendo crer que a televisão e os meios de comunicação de massa se prestam a isso.
O mais engraçado é que esses debates na TV são uma tentativa de mostrar um lado civilizado do futebol, por oposição à barbárie do culto coletivo representado pela torcida. São uma tentativa de substituir pelo paletó o uniforme de delinquência da torcida.
São um esforço de suavizar a inclinação arcaica pela violência, presente no espírito de quadrilha das torcidas. Tentativa de dar um pouco de racionalidade à consciência mutilada, aos traços sádicos reprimidos, típicos da identificação cega com o coletivo.
Em seu ensaio "Educação após Auschwitz", Adorno se refere a essa ambiguidade da função do esporte, a qual, segundo ele, ainda não foi devidamente reconhecida por uma psicologia social crítica.
Os programas de televisão que discutem futebol seriam (também do ponto de vista da ambiguidade da função do esporte) um caso de fetichização da técnica. Quer dizer: os homens teriam uma relação libidinosa com esse esporte, espécie de compensação para a carente relação libidinosa com as pessoas -com as mulheres, provavelmente.
Só que eles deveriam procurar esclarecer tão complexa questão longe das telas da televisão, em outro lugar que não as concessões públicas para serviços de utilidade pública.

E-mail mfelinto@uol.com.br

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