São Paulo, terça-feira, 2 de dezembro de 1997
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Insulto à lógica

LUÍS PAULO ROSENBERG

Todos nós sabemos que política é a arte do possível. Que sua prática exige humildade, paciência e perseverança na busca do consenso. Um mau acordo é melhor do que uma boa confrontação e que uma andorinha não faz verão.
Mas é difícil perdoar FHC por transformar seu pacote fiscal costurado num final de semana em um monstrengo indefensável. E, desta vez, a equipe econômica está isenta de culpa, pois nem sequer participou das reuniões -cambalachos que culminaram com o acordo de alto nível, alcançando na sexta-feira passada.
Vamos aos retrocessos. Em primeiro lugar, só tem legitimidade para aumentar a carga tributária o governo que cortou primeiro até o osso o seu próprio gasto. Obviamente, não é este o caso deste governo. Todos os itens de despesa têm crescido, desde que FHC virou ministro da Fazenda de Itamar. Mesmo no pacote original havia um desbalanceamento flagrante entre ganhos de arrecadação e desejos de redução de gastos.
Mas, em tempos de crise internacional, às favas a ética fiscal. Tribute e relaxe, se a Coréia permitir. Sendo assim, qual o caminho menos doloroso para efetivar o aumento de arrecadação?
Supondo que todos os esforços para coibir a sonegação estejam sendo desenvolvidos, o bom senso recomenda que se eliminem as imunidades, isenções ou concessões de subsídios, para caminhar no sentido de uma maior equidade tributária: onde todos pagam, todos pagam menos.
Daí os aplausos para a medida do pacote que cortava pela metade todos os incentivos fiscais. Vale dizer, respeitando-se todos os compromissos até agora contratados pelo governo com o setor privado, comunicava-se à sociedade que empresários mamariam daqui para a frente só metade das tetinhas gotejantes, regionais e setoriais, como contribuição para tirar o país da crise.
Esqueceram de combinar com os beques. No caso, com os do próprio time do governo, que ameaçaram deixar passar tudo quanto fosse bola, se o Executivo não recuasse. A atitude abjeta do PFL, entretanto, é perfeitamente coerente com seu passado de partido do passado, que confunde liberal com libertino na defesa de interesses paroquiais e no desprezo pela lógica de uma economia liberal.
FHC cedeu ao PFL: a medida não vigora imediatamente, mas será introduzida lubrificadamente, aos poucos, daqui até o início do próximo milênio. Caixinha, obrigado, agradecem risonhos os abastados que continuarão transferindo para seus patrimônios o fruto dessa renúncia fiscal, enquanto nós passamos a pagar nosso Imposto de Renda com alíquota aumentada.
O outro absurdo foi a elevação da taxação sobre a renda fixa. A lógica invocada exige contorções mentais de dar torcicolo: nada muda, pois vai-se ajustar a alíquota no limite da correção do decréscimo de tributação real decorrente da alteração dos juros nominais provocada pelo sucesso do combate à inflação.
Não entendeu? Tentemos de novo: depois de dobrar a taxa de juros, o governo descobre que a alíquota de tributação incidente sobre os juros reais caiu porque foi mantida a mesma alíquota sobre juros nominais que hoje carregam um conteúdo de juros reais mais elevado. Ainda não?
Desista. Passemos às consequências da medida. Primeira: os juros recebidos pelo aplicador reduzem-se, o que é mal: ou ele estava recebendo demais e a diretoria do Banco Central deveria ser admitida por crime de lesa-pátria ao sacrificar o país com mais juros do que o mínimo indispensável, ou vai-se diminuir a remuneração líquida dos poupadores num momento em que se procura restringir o consumo.
Segunda consequência: parte do tributo será paga pelo lucro dos bancos, o que não é mal (desde que eles o tenham), parte será descarregada sobre os empresários que tomam empréstimos, o que é péssimo para a produção, o emprego e bom para uma alta ainda mais preocupante da inadimplência.
Finalmente, a medida estimula a desintermediação financeira, nome pomposo para um fenômeno banal: a substituição dos bancos, sobre os quais o Banco Central tem controle total, pelos agiotas de esquina, sonegadores por definição e marginais da política monetária.
Foi assim que a negociação FHC-PFL conseguiu trocar o esforço de manter uma certa coerência na distribuição do ônus tributário decorrente do pacote fiscal por uma proteção deslavada dos poderosos mais uma distorção alocativa perversa na área de juros. O irônico é que essas heresias foram cometidas em nome da defesa dos pobres e oprimidos, uma falsidade proferida pelo PFL e referendada por FHC, ao avalizar que o pacote agora está concebido "de uma maneira mais justa, mais equitativa".
Pobre do autor da Teoria da Dependência, hoje dependente do apoio de um partido que nem de direita sabe ser. Não é sem motivo que FHC, o príncipe do pensamento organizado e comunicador imbatível, ao divulgar o acordo sexta-feira última desenvolvia um discurso tortuoso em que sua descrença no que falava emergia continuamente, como neste trecho:
"Claro também, na questão do vale-alimentação, que houve muita discussão, sobretudo dos sindicatos, algumas centrais sindicais que ponderaram e deram sugestões, havia uma duplicidade de incentivos, pois incentivos, um deles não, mas há o outro, a de um lançamento do vale-refeição como custo operacional e, portanto, redução, sob essa forma o Imposto de Renda será mantido, mas nós não precisamos fazer com que isso seja computado à redução"

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