São Paulo, terça-feira, 2 de dezembro de 1997
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Mulheres e empregos

EVA BLAY

Lendo um artigo do estimado e respeitado Clóvis Rossi ('Mulheres, mulheres', Folha de 23/11, pág. 1-2), vi retornar uma velha discussão que envolveu os sindicatos nas décadas de 20 e 30 -a de que a mulher "rouba" o emprego do homem.
Três décadas de feminismo e outras tantas de luta sindical para esclarecer a falsa questão parecem não ter sido suficientes para desfazer essa falácia. Informa Rossi que uma suposta salvação para a alta taxa de desemprego, pelo menos a européia, seria o retorno das mulheres à "fórmula tanque-e-fogão".
Cabe perguntar: a mulher deixou essa e tantas outras tarefas domésticas? Na verdade, ela somou o trabalho remunerado ao trabalho doméstico gratuito, sua segunda jornada.
Vale a pena ir um pouco mais fundo. Supondo que a mulher fosse afastada do trabalho remunerado, qual delas deveria ser excluída? A celibatária, a viúva, a casada, a separada, a mãe-chefe-de-família, a pobre, a de classe média, a rica, a analfabeta, a escolarizada?
Qualquer escolha teria como pressuposto a existência de um parceiro que a sustentasse "para sempre". Ela deveria necessariamente se casar, e o homem deveria ser absolutamente responsável por ela e pelos filhos. Ou seja, trataríamos de uma fantasia, de uma visão utópica da realidade.
Por trás dessa exclusão esconde-se um perverso cálculo econômico. O salário do homem é insuficiente para si mesmo -quanto mais para sustentar uma família. Prova-o o fato de que as empresas fornecem comida a seus trabalhadores, para que trabalhem melhor. Quanto à mulher e aos filhos... passam fome.
Além disso, a mulher deve cuidar do trabalhador, de sua roupa, de sua saúde; preparar sua marmita, quando necessário; zelar pela higiene da casa.
Isso significa que ela está trabalhando gratuitamente para o mercado que absorve o trabalho masculino. A empresa contrata um homem, paga o salário de uma pessoa, mas obtém o trabalho de, no mínimo, duas. Alguém se apropriou desse trabalho não pago, e não foi o trabalhador -nem sua família.
Na condição de sustentada, a mulher sempre teve de suportar todas as contingências da vida conjugal -incluindo violência física e sexual, infidelidade e prepotência.
Os problemas se tornam agudos quando o homem a abandona com os filhos; ou quando resolve enxotá-la de casa por ter arrumado uma nova companheira; ou quando se separam e não há pensão; ou, ainda, quando ele morre e a mulher, após longos anos longe de sua profissão, deve retornar, desatualizada, ao mercado de trabalho.
A década de 60 mostrou que a mulher escolarizada, sobretudo em universidades, quando era relegada à condição de espectadora dos acontecimentos da vida política, econômica ou científica só fazia aumentar a frequência ao divã do psicanalista e o consumo de antidepressivos. Era o preço pela renúncia à sua cidadania.
E há, ainda, a célebre fantasia de que a mulher, ao perder seu papel de mãe-doméstica, quando os filhos crescem, torna-se uma depressiva contumaz. Curiosa contradição: a sociedade lhe impõe a maternidade como único caminho e não lhe ensina como enfrentar a perda dessa função após a curtíssima presença dos filhos em casa.
As mulheres há muito tempo tomaram seus destinos nas próprias mãos. No Brasil, muito antes do feminismo, mulheres sempre trabalharam, sob a alegação de que faziam isso para "ajudar" em casa.
Essa "ajuda" era, inúmeras vezes, a única fonte de renda da casa, segundo revelaram pesquisas. E, por ser uma "ajuda", as mulheres continuam até hoje ganhando a metade do que se paga ao homem pelas mesmas tarefas.
O feminismo desmascarou a falsa ideologia de que a condição biológica do sexo feminino impunha a domesticidade. Mostrou que a condição de gênero é construída pela própria sociedade, que determina os papéis que homens e mulheres devem desempenhar.
Também renovou os conceitos de maternidade e paternidade, dando aos homens e às mulheres a mesma oportunidade de amar e expressar por seus filhos todo o carinho que quiserem.
Com o feminismo, os homens conquistam o direito de manifestar seus sentimentos, e as mulheres, o de optar pela maternidade. E, já que a condição de gênero é socialmente construída, ela pode também ser modificada.
Os homens não precisam ser os únicos responsáveis econômicos pelas famílias nem morrer mais cedo em decorrência da enorme pressão que sofrem. As mulheres querem partilhar da construção de uma vida comum, mantendo suas capacidades integralmente.
Trabalhar é um pressuposto da sociedade contemporânea, não apenas para que a mulher ganhe o próprio dinheiro, mas para que seja respeitada como ser humano. Resolver o complexo problema do desemprego não depende de sua exclusão do trabalho remunerado.
Para começar, bastaria impedir o trabalho precoce das crianças, substituindo-as por adultos; colocá-las nas escolas, ampliando o sistema escolar e o emprego de docentes; retirar da rua as que nela vivem, num efetivo trabalho de reinserção na sociedade; criar moradias normais para elas, com o trabalho de especialistas e leigos treinados.
Dirão os céticos que não há dinheiro para isso. É claro que há. Basta ser essa uma prioridade que a sociedade civil imponha aos governos.

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