São Paulo, quarta-feira, 3 de dezembro de 1997
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Discurso antiaborto é atentado contra 'vida humana'

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Discussões sobre o aborto são sempre complicadas. No Brasil, tornaram-se quase malucas. Uma grande quantidade de energia, de tinta e militância está sendo gasta atualmente. Não para discutir a legalização do aborto puro e simples, mas para regulamentar uma lei promulgada há 57 anos.
A lei garante o aborto em casos de risco à vida da gestante e de estupro. O que se procura é garantir a aplicação da lei nos hospitais públicos. Mas é como se, da noite para o dia, o aborto estivesse para ser legalizado irrestritamente no país.
Se colocado nesses termos, o debate fica praticamente insolúvel. Os militantes antiaborto vão ter sempre razão num ponto: o filho de um estuprador não pode ser "discriminado" em seu "direito à vida".
A lei é contraditória. Ou se admite o aborto em todo caso de gravidez indesejada, ou não há como achar que só em casos de estupro esse recurso possa valer.
Não há sentido em dizer que a Constituição garante "o direito à vida" e que a lei proíbe o aborto com base nesse princípio, se nos casos de estupro se abre uma exceção.
A rigor, haveria muitas, muitíssimas exceções a abrir. A mulher que fez sexo alcoolizada; a mulher que se fiou em vagas promessas de lar e casamento; a mulher que se apaixonou erradamente; a mulher que, num frenesi sensual, perdeu a razão; a mulher que usou uma pílula fora de validade -não foram todas vítimas de uma espécie suave de estupro? E, então, por que não poderiam abortar?
Na lei atual, há moralismo e culpabilização. Considera-se que toda mulher, a não ser a estuprada, está sempre de posse de todas as suas faculdades morais. Ou seja: se fez sexo, e não foi forçada a isso, que aguente as consequências. Pecadora, não poderá abortar.
A loucura de tudo isso é que não se discute o direito ao aborto em todos os casos acima mencionados -o que levaria à sua legalização geral- mas de acordo com uma lógica que favorece os antiabortistas.
"Estamos só regulamentando uma lei!", dizem uns. "Mas essa lei é criminosa!", respondem os outros.
Avançou-se tanto na discussão, que não vejo por que uma lei verdadeira sobre o aborto -que garanta esse direito amplamente- não possa ser feita. Estamos perdendo tempo.
Os setores pró-aborto se desgastam defendendo uma lei restritiva; os setores antiaborto mostram o de que são capazes. É como se o estado real do debate na sociedade estivesse à frente do que se delibera no Congresso. Os católicos estrebucham com a regulamentação do aborto pós-estupro -que, pelo menos, estrebuchassem contra a lei certa. E que os abortistas, pelo menos, dirigissem toda sua luta na direção do aborto total.
Claro que sou a favor do direito ao aborto em qualquer circunstância; em qualquer caso de gravidez indesejada.
A razão, para mim, é simples: não considero um feto de três meses equivalente a uma pessoa humana. Não considero uma mulher que tenha abortado uma cúmplice de homicídio premeditado.
Fosse assim, a pena para aborto deveria ser de trinta anos. Mesmo a legislação mais conservadora distingue entre o aborto e o assassinato. Fala-se demais, hoje em dia, em "direito à vida". Direitos são atributo de pessoas, não de entidades metafísicas ou de bebês virtuais. Asfaltar uma rua é negar o direito à vida do mato que ia nascer ali. Combater a Aids é negar ao vírus o direito à vida.
A "vida" não é boa nem má. É um fato belicoso, não uma prerrogativa sentimental.
Quando um feto se transforma em pessoa? Não sabemos. Talvez no ponto em que procure defender-se. Ficou famoso um vídeo que mostrava um feto crescido resistindo aos procedimentos de aborto. Todos -até os mais enfáticos defensores do aborto- saíam da sala de projeção abalados. Por que? Porque viam um comportamento "humano", ou mesmo "animal" naquele feto. Nem todos os abortos, entretanto, são feitos tão tarde.
A igreja condenou uma pílula "abortiva": interrompia a reprodução de células com poucos dias, ou horas, de "vida".
Mas a "vida" não é uma questão a ser avaliada em microscópios. Nesse aspecto, a igreja é de uma materialismo muito reprovável. Defende-se, não uma pessoa, mas uma palavra.
Experimente juntar a essa palavra -"vida"- um adjetivo: "vida humana". A operação não será dolorosa. Vimos acima que não estamos de acordo em defender a "vida" do vírus da Aids. Passemos, então, a considerar o valor da vida humana.
Imagine que um exame ateste o seguinte: seu filho será cego de nascença. Mas, se você tiver outro filho, ele não será cego. Daqui a quatro meses, você poderá gerar uma criança normal. Isto é, se abortar agora. Não se trata sequer de um caso de "malformação" do feto. Apenas está dada a escolha entre uma criança dotada de plenas capacidades visuais e outra cega. Por que não escolher? Será que em nome de um direito à vida dos cegos (que existe e é respeitável, sem dúvida) vou desistir do bebê não-cego daqui a quatro meses? Cuja vida, imagino, terá menos problemas e dificuldades?
Ampliando o raciocínio. A mulher que aborta, na maioria das vezes, não está pensando em não ter filhos nunca mais. Está pensando em ter um filho, mais tarde, em melhores condições. Iremos sacrificar o filho virtual número dois (o que vier desejado) em benefício do filho virtual número um (o indesejado)? Qual a vantagem? Porque pôr no mundo mais infelizes, se existe a possibilidade de, com algum retardo, pôr no mundo gente mais feliz?
E, se a mulher não quer filho nenhum, porque forçá-la a tanto? A "vida", em abstrato, pode agradecer. Mas a vida humana, concreta, da criança, é outro assunto.
Termino com uma provocação. Por que a igreja é tão fanática contra o aborto, contra a camisinha, contra pílula? Minha hipótese é a seguinte. Os padres estão comprometidos com o celibato. Para eles, o sexo não pode ser prazer, amizade, comunhão ocasional de corpos e de almas. Para eles, o sexo tem de ser útil e produtivo.
Não é que sejam contra o aborto. São contra o sexo. Imaginam que cada mulher, depois de ir para a cama com um homem, tenha de pagar pelo que fez. Imaginam que o preço seja o filho, a gravidez, a dor do parto. Não admitem que uma mulher possa pensar mais um pouco, e dizer, por exemplo: "Não, agora não. Quero ter um filho quando puder cuidar dele ao máximo, amá-lo integralmente, zelar em tudo, doidamente, com tudo o que eu tiver de amor por ele".
Esse raciocínio envolve mais respeito à vida humana do que qualquer raciocínio antiaborto, em defesa da "vida" abstrata. Mas a igreja defende uma vida abstrata, ignorante do que seja amar humanamente, porque desconhece -ou quer desconhecer- o sexo. É antiaborto, "em defesa da vida", porque não se reproduz e porque não sabe amar.
Pois distinguir entre sexo e amor é importante para qualquer pessoa que queira dar importância real ao amor. A igreja, os antiaborto, não distinguem entre uma coisa e outra. São os maiores materialistas. Sacralizam um ato mecânico, abençoam o estupro, divinizam o encontro casual entre um pênis e uma vagina. São pornógrafos. O discurso deles é impuro, é sujo, é um atentado contra a pessoa humana.

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