São Paulo, sexta-feira, 5 de dezembro de 1997
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MAO 2

Havia vazamentos em canos de gás e bolas de fogo do lado de fora de restaurantes famosos, e as pessoas repetiam: "Beirute, Beirute, igual a Beirute".
Não sei se já disse que sou uma das pessoas mais nervosas de Berlim. Acho que me fabricaram com o sangue já fervido
A Editora Rocco lança este mês "Mao 2", a grande aventura do escritor norte-americano Don Delillo pelo terrorismo internacional. Leia a seguir trechos do livro publicados com exclusividade pela Folha
Ela carregava muitas vozes através de Nova York. Falava com as pessoas no parque, contando-lhes sobre um homem de muito longe que tinha o poder de transformar a história. Os labirintos das caixas habitadas conectavam-se. As noites quentes e as pessoas de todas as imediações eram atraídas ao parque. Elas tinham uma textura de fuligem. Uma mulher carregava seus pertences num feixe de sacos plásticos, as alças de uma sacola amarrada às de outra, e caminhava pesadamente arrastando as sacolas atrás dela por meio de uma confiante extensão de barbantes emaranhados. Karen reparou em como os pombos e os esquilos assumiam características de ratos. Iam direto às barracas à procura de comida. Os pombos já nem voavam, e os esquilos agachavam-se, saltavam e esperavam, enfiando-se atrevidamente nos sacos de papel pousados perto das pessoas nos bancos. Os ratos verdadeiros chegavam com a noite, silenciosos e furtivos.
As pessoas saíam das casas, reuniam-se nas praças empoeiradas e seguiam juntas, correntes de pessoas gritando em coro uma palavra ou um nome, caminhando para algum lugar central onde se juntariam a outras, sempre gritando.
Havia Omar vendendo suas drogas. Algumas vezes ele a ajudou a carregar garrafas até as lojas que as compravam. Uma vez os dois entraram numa galeria de arte e ficaram parados olhando uma grande construção que se estendia ao longo de uma parede. Ela viu metal, estopa, vidro, havia tinta grudada no vidro, uma prateleira de madeira carcomida, havia pilhas de lanternas e cartões-postais da Grécia. Karen viu uma colher suja de comida que estava enfiada na estopa. Achou que gostaria de tocar aquilo, apenas tocar, só para pôr a mão em algo único. Então estendeu a mão e a tocou; depois olhou em volta para ver se alguém percebera. Em outro impulso, levantou-a levemente. A colher caiu na estopa com um ruído de velcro abrindo-se. Ela ficou espantada ao ver que aquilo era destacável. Olhou para Omar fazendo um biquinho e com os olhos sérios e arregalados. Ele fez uma cara de surpresa exagerada, andando para frente e para trás. Em outras palavras, uma série de caretas de boca aberta, com um toque de pompa. Ela ficou com a colher na mão, totalmente imóvel. Nunca se sentira tão assustada. A coisa desprendeu-se da pintura. Uma colher de verdade com comida grudada que também era de verdade. Ela experimentou cheirar a comida, com cuidado para não mexer a colher depressa demais e causar outro horrível desmoronamento. Omar pavoneava-se em direção à porta como um trombonista num funeral, fazendo os mesmos gestos. Ela achou que a colher não se grudaria de novo à estopa, e não havia um lugar por perto onde pudesse colocá-la. O salão era totalmente nu, paredes, piso e obras de arte. Ela decidiu seguir Omar com a colher erguida ostensivamente na mão para que alguém a visse e então ela pudesse devolvê-la com uma desculpa balbuciada, que ela já havia elaborado totalmente, e depositar a colher cuidadosamente sobre a mesa perto da porta. Mas ninguém disse nada, e ela saiu para a rua com a colher ainda na mão, cheia de comida grudada, e estava com mais medo do que antes. Saiu da galeria levando parte de uma obra de arte. Omar pavoneava-se e exibia-se. Ela olhava-o enquanto ele descia a rua todo empertigado, passando por manequins com quimonos negros de cotovelos salientes.
Havia vazamentos em canos de gás e bolas de fogo do lado de fora de restaurantes famosos, e as pessoas repetiam: "Beirute, Beirute, igual a Beirute."
Perto do parque ela passou pelo mendigo que dizia:
"Dá um trocado, ainda te amo." Sempre que ela passava, ele repetia seu refrão do dia inteiro. As pessoas passavam. Ainda te amo. Elas passavam. Ainda te amo. Dá um trocado. Elas passavam. Ainda te amo. Ela deixou as garrafas vazias e as latas de soda nas aberturas das tendas e catou outras garrafas para vender, comprando comida para os habitantes do parque e dizendo a eles que havia um homem de muito longe. Omar levou-a a prédios onde ele fazia seus negócios rápidos com um modo de falar que ela nunca conseguia entender. Os corredores tinham pisos de ladrilhos, e as portas tinham aqueles buracos onde colocavam fechaduras e arrancavam fechaduras. Era uma civilização de fechaduras. No muro de um beco, uma mão pintada parecia apontar para lugar nenhum.
No apartamento de Brita, ela olhou muitos álbuns de fotos, espantada com o sofrimento que encontrou. Fome, fogo, distúrbios, guerras. Esses eram os assuntos permanentes, fotos que ela não conseguia parar de olhar. Olhava as fotos, lias as legendas, olhava as fotos outra vez, rebeldes com capuzes, homens executados, prisioneiros com sacos de batatas na cabeça. Ela olhou para as costelas de africanos famintos. A fome estava por toda parte, mulheres conduzindo crianças nuas numa tempestade de areia, seus longos mantos esvoaçando. Ela lia a legenda e olhava a foto outra vez. As fotos ficariam nuas sem as palavras, sozinhas no espaço aberto. Algumas noites ela chegava ao apartamento e corria para as fotos. Multidões delirantes rodopiando sob enormes fotos de homens sagrados. Ela podia olhar a mesma foto sete vezes durante sete noites, crianças caindo de um prédio em chamas, e ler a legenda a cada vez. Era sofrimento após sofrimento. Morrendo-se na decadência da selva. As palavras ajudavam-na a localizar as fotos. Precisava das legendas para preencher o espaço. Sem as pequenas linhas datilografadas, as fotos poderiam arrasá-la.
Ela falava com israelitas e bangladeshes. Um homem com olhos brilhantes virou-se no assento, enquanto dirigia vertiginosamente em direção ao centro, e ela formou a imagem do táxi mergulhando numa capotagem, soltando faíscas. Ela falava com todos os motoristas, fazendo perguntas pelo buraco da divisória.
Elas passavam. Ainda te amo. Passavam. Ainda te amo.
Havia um dialeto dos olhos. Ela lia os sinais e os dizeres perto do parque. Os bares poloneses, os banhos turcos, nas janelas, russo nas manchetes, havia figuras de caveiras e nomes pintados. Tudo o que ela via era algum tipo de vernáculo, banheiras em cozinhas e antigos fogões Waterman, as prateleiras das lojas de bebidas cobertas por plásticos à prova de balas como algum museu transparente de garrafas. Ela continuava vendo as palavras Sendero Luminoso em paredes semidemolidas e tapumes de fachadas de lojas. Sendero Luminoso nas janelas bloqueadas por tijolos de prédios abandonados. Palavras agradáveis à vista. Estavam pintadas em letreiros de teatros e cartazes colados em todas as paredes descascadas das redondezas.
- Não estou de muito bom humor - disse Omar.
- Só estou perguntando.
- Não venha me vaselinar. Não tem mais assunto, está bem?
- Estou fazendo uma pergunta simples. Ou você sabe ou não sabe.
- Não tenho tempo nem para sexo, muito bem; então você me aparece, e não sei nem o seu nome.
- Descobri a sua idade. Eles me disseram no parque.
- Olha, eu me sustento. Eu protejo minha esquina, está sabendo? Tenha eu seis ou sessenta anos.
- Está bem, você é maduro e dono de toda a experiência. Mas é isso mesmo o que acho.
- Caminho Luminoso. Sendero Luminoso. Caminho Luminoso em espanhol.
- Isso é religioso?
- É uma guerrilha e sei lá mais o quê. Mostrando sua presença.
- Onde?
- Em qualquer lugar - disse Omar.
Corpos agitando-se no palco ao ar livre, crianças perdidas nas caixas de leite. Ela lembrou-se da placa Criança Surda e imaginou o sossego de domingo numa estrada do interior. Igualzinho a Beirute. Ela falou com alguns conhecidos no parque, dizendo a eles como completar suas vidas conforme os ensinamentos de um homem que tem o poder. No metrô ela lia os avisos de emergência em espanhol mesmo que os avisos em inglês estivessem bem ao lado. Ponderava que numa emergência de verdade ela poderia mudar para o inglês se precisasse, mas enquanto isso estava ensaiando vozes em sua cabeça.
No metrô, em muitas ruas, nas esquinas dos parques à noite, o contato poderia ser perigoso. Contato não era uma palavra ou um toque, era o astral que havia entre estranhos. Ela estava aprendendo a mudar sua maneira de andar e de sentar-se, como esconder seus olhares ou disfarçá-los rapidamente. Ela permanecia fechada. Andava dentro de si mesma, não avançava o olhar além das fronteiras da terra de ninguém, onde podia ser reconhecida. O que significava algo como eu sou uma pessoa e você é uma pessoa, o que lhe dá o direito de me matar. Ela imaginou uma cena de pessoas correndo pelas ruas.
Ela gostava de subir a escada da cama de Brita com a minitevê na mão e com o apartamento todo no escuro e sentar-se perto do teto na luminosidade, assistindo sem som.
Apareceu uma cena à luz do dia de um milhão de pessoas numa enorme praça e muitas bandeiras agitando-se com caracteres chineses. Ela vê pessoas sentadas com as mãos calmamente pousadas nos joelhos. Vê em último plano um retrato de Mao Tsé-Tung.
Começa a chover. Eles marcham na chuva, um milhão de chineses. Depois as pessoas de bicicleta passam por veículos queimados, ciclistas usando capas e empunhando guarda-chuvas. Ela vê caminhões do Exército queimados com pessoas examinando-os de perto, surpresas por estarem tão perto, e à distância postes arqueados sobre árvores.
Um grupo de velhos chega empertigado em roupas de Mao.
Ela vê soldados na escuridão correndo pelas ruas. Está espantada com as filas e filas de soldados correndo e com aquelas armas antidistúrbios que eles carregam.
Depois pessoas sendo dispersas no escuro, grandes multidões fendendo-se e separando-se, da forma como uma multidão se dispersa, deixando um espaço que parece indistinto.
Exibem oficiais graduados em roupas de Mao.
Os soldados correndo pelas ruas, entrando na ampla área da praça iluminada como o dia, embora agora seja noite. Há algo estranho sobre as tropas correndo das ruas e avenidas para um grande espaço aberto.
Elas correm com o mesmo passo arrastado, com aquelas pequenas armas apontadas, e a multidão abre espaço.
Depois o retrato de Mao na praça iluminada como o dia com tinta derramada em sua cabeça.
Os soldados chegam correndo em cadência perfeita naquele passo preguiçoso, fileiras após fileiras, e ela quer que aquilo prossiga, que continuem mostrando as fileiras de soldados correndo com seus capacetes fora de moda e revólveres que parecem de brinquedo.
Mostram um corpo queimado e ainda fumegante.
Há corpos agarrados a bicicletas caídas, chamas precipitando-se na escuridão. Os corpos ainda estão nas bicicletas, e há outros ciclistas olhando, alguns usando máscaras sanitárias. Há agora uma verdadeira pilha de corpos, e muitos dos mortos ainda estão sentados nas bicicletas.
Qual é a palavra? Dispersa? A multidão dispersa por soldados correndo que se movem pelo espaço amplo.
Uma multidão substituída por outra.
Essa é a prédica da história, quem toma o amplo espaço e pode mantê-lo por mais tempo. A multidão de roupas coloridas contra a multidão em que todos se vestem da mesma maneira.
Eles mostram o retrato de Mao de perto, uma nova foto limpa, e ele tem aqueles montinhos de cabelo que aumentam sua cabeça e a grande verruga sob sua boca, e ela tenta lembrar-se da verruga que aparece na versão desenhada a lápis por Andy que ela tinha em casa na parede de seu quarto. Mao Tsé-Tung. Ela gostava muito daquele nome. mas como retrato é engraçado. O que é engraçado como retrato?
Ela ouve um alarte de carro disparar na rua.
Troca de canal, e milhões de chineses aparecem na praça iluminada como o dia. Ela espera ver mais cenas de soldados correndo. Mostram o morto na bicicleta, um corpo de soldado pendurado numa viga, a fileira de velhos oficiais em roupas de Mao.
O que significaria que todos aqueles velhos vestidos com roupas de Mao e as pessoas na praça estão todos em mangas de camisa?
A multidão colorida dispersa.
Mostram o grande retrato oficial em último plano, e ela agora tem certeza de que no desenho de Andy não há verruga.
Há algo estranho sobre os soldados entrando numa praça, correndo em fileiras em cadência preguiçosa. Ela continua trocando de canal para ver os soldados.
Mostram o morto na bicicleta.
A praça clara como o dia aparece de novo. Engraçado como um retrato mostra a pessoa verdadeira mesmo quando é incompleto.
E mais tarde, quando ela sai à rua, vê um táxi que havia derrapado e batido num automóvel estacionado; o alarme de um terceiro carro está soando. Há pessoas paradas em volta, comendo e olhando. As lâmpadas de gás inclinam-se sobre a cena incandescente, e, na vertigem dos locais interpostos, a grande praça de Pequim e a rua de vento enfumaçado do centro e o espaço no prédio atarracado onde está a TV, ela pára observando o carro amassado, olhando os corpos de cabeça para baixo e o sangue espalhado por todo lado.
Elas passam. Dá um trocado. Passam. Ainda te amo. Dá um trocado. Passam. Ainda te amo.
Ela seguiu um homem que se parecia com Bill, mas, quando ele se mostrou melhor, ficou claro que não tinha o menor jeito de escritor.
Ela cuidou da colher com comida da galeria de arte com o maior carinho. Guardou-a numa prateleira, depois de retirar alguns livros para que ela pudesse ficar sem ser perturbada num espaço aberto e também protegida do sol. Ela estava preocupada com a comida. Se a comida por acaso fosse tocada ou esfregada por outro objeto ou se fosse amolecida pelo ar quente, poderia cair da colher e isso seria uma desfiguração que ela não poderia suportar. A colher e a comida eram uma coisa só.
Ela falava sinceramente a um casal no parque, um homem e uma mulher com pele de fuligem. Sentaram-se num colchão dentro do barraco de caixa deles. Karen estava agachada na abertura, seus dedos tocavam o chão e um saco plástico que era a cortina da entrada apoiava-se sobre seus ombros como uma espécie de manto.
Nossa tarefa é preparar-nos para a segunda vinda.
O mundo será uma família universal
Somos filhos espirituais do homem de muito longe de que lhes falei.
Estamos protegidos pelo poder total do nosso verdadeiro pai.
Somos as crianças totais.
Qualquer dúvida desaparecerá nos braços do controle total.
Omar Neely tinha quatorze anos. Ela andava com ele, e passaram diante do Jesus Ucraniano na fachada da igreja. Passaram pelo hotel Aids. Ela se deu conta de que não sabia onde ele vivia ou se tinha pais ou irmãos. Ela costumava achar que irmãos eram apenas brancos ou de classe média devido a algo na natureza da palavra. Passaram pela escultura de um cubo negro equilibrado sobre um ponto. Dez homens dormiam sob ela com suas sacolas e carrinhos de compras ao lado, com muletas encostadas junto a alguns; havia alguns braços e pernas engessados. Omar deveria ajudá-la a carregar a divisória que ela deixara numa demolição. Para levá-a até o parque. Mas numa rua de fábricas surgiram dois homens com chapéus minúsculos, aqueles chapeuzinhos tipo diplomata, e camisetas sem mangas. Ela sentiu o contato no ar, a chispa de significado que tira o sangue do rosto. Mas tudo o que fizeram foi conversar. Conversaram com Omar usando figuras de linguagem que ela não conseguia entender. Depois saíram com ele, e ele nem olhou para trás. E quanto à minha divisória? Um deles falava com ele com uma mão em seu braço, e ele caminhava com aquele andar gingado, grande para sua idade.
Gente com carros de supermercado. Quando essas coisas saíram das lojas para as ruas? Ela via aqueles carrinhos por toda parte, empurrados, puxados, cheios de coisas, disputados, sem rodas, amassados, rodando capengamente, cheios de trivialidades vivas, os resíduos vivos de tudo se tal for interpretado corretamente. Ela falava com a mulher no saco plástico, oferecendo-se para conseguir-lhe um carrinho. É algo que eu posso conseguir. A mulher falava com ela dentro do saco, falava com um gralhar de corvo, mum ganido sufocado que Karen tentava compreender. Ela deu-se conta de que não compreendia quase ninguém ali, ninguém falava de uma forma que ela tivesse ouvido antes. Em toda a sua vida, ela tivera uma forma de ouvir e agora precisava aprender outra. Era uma língua completamente diferente, sem escrita e para dentro, o falar molambento de carrinhos de supermercados e sacos plásticos, a linguagem da fuligem, e Karen tinha de escutar cuidadosamente a maneira como a mulher arrancava da garganta uma fileira de palavras como lenços amarrados uns nos outros, para depois tentar reconstruir a frase.
A mulher parecia dizer:
- Há ônibus nesta cidade que dão entrada para cadeiras de rodas. dêem rampas para as pessoas que moram nas ruas. Quero ônibus que se abaixem para nós.
Ela parecia dizer:
- Quero o meu próprio cão-guia de cegos, que deixam entrar nos cinemas.
Mas talvez fosse algo completamente diferente.
Havia pessoas reunidas em grupos por toda parte, saindo de casas de barro, barracos de tetos de zinco e de campos abertos, elas encontravam-se em alguma praça empoeirada para marchar juntas até um ponto central, gritando um nome, reunindo muitas outras pelo caminho, algumas estão correndo, outras têm camisas manchadas de sangue, e chegam a um amplo espaço que enchem com seus corpos espremidos, uma palavra ou nome, gritando um nome sob o céu de giz, milhões gritando em coro.
Ela disse: "Dê-me animação" ou "Dê-me aniquilação", e, quando Karen trouxe a comida quente para ela numa fôrma de torta, ela colocou-a dentro de sua sacola e desapareceu.
Brita voltou para casa e as duas sentaram-se para comer uma refeição que Karen preparara com carinho. Ela tinha limpado o apartamento e colocado seus poucos pertences numa bolsa que encostara na porta, para demonstrar que estava pronta para ir embora assim que Brita o pedisse.
Brita era impressionante, era muito alegre e tagarela, carregada de uma forte energia que tivera o centro drenado, e agitava-se toda pelas bordas. Ela parecia enxuta e bonita como alguém que acaba de voltar da brilhante solidão dos trópicos.
- Você gosta de banho de banheira ou de chuveiro? -perguntou Karen.
- Só tomo banho quanto há tempo. Eu me entrego ao meu banho. Só nele sou feliz no presente momento.
- Vou preparar-lhe um banho.
- Geralmente só fico sabendo disso depois. Uns cinco anos depois. Exceto quanto ao meu banho e aos meus escritores. Fico feliz fotografando escritores.
- Acho que eu nunca disse isso antes: "Vou preparar-lhe um banho." Soa estranho quando se diz.
- E sobre Bill, onde ele está, afinal de contas? Alguém sabe daquele tolo?
- Não há notícias, ou Scott teria ligado para mim.
- Os homens têm tendência a desaparecer. O que você acha? Embora eu imagine que você também tenha andado desaparecida. Eu não poderia nunca desaparecer sem mais nem menos. Teria de dar certos avisos. Deixar os desgraçados saberem por que estou partindo, deixá-los saber onde me encontrar para que possam dizer-me quanto estão tristes porque estou partindo.
- Seu marido desapareceu?
- Ele saiu numa viagem de negócios.
- Quando foi isso?
- Há dezoito anos.
- Parecido com... Qual é mesmo o nome daquele mito?
- Exatamente. E ele tinha uma série de aventuras, executava feitos legendários e voltava com um contrato para um milhão de peças sobressalentes.
- Quando quiser, eu preparo o seu banho.
- Seu marido desapareceu? - perguntou Brita.
- Mandaram-no para a Inglaterra para ser missionário. Não sei onde ele está agora.
- E você se casaram naquela igreja.

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