São Paulo, sexta-feira, 5 de dezembro de 1997
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Paciente que mora há 21 anos no Hospital das Clínicas expõe 67 quadros hoje, em SP

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

A pintora Eliana Zagui nunca viu o mar. Mesmo assim, gosta de adivinhá-lo. Das centenas de quadros que já pintou, muitos exibem paisagens marítimas. "O que me fascina no mar é o movimento, o incessante ir-e-vir."
Eliana está com 23 anos. Há 21 mora no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Teve poliomielite, a paralisia infantil, inflamação da medula espinhal provocada por um vírus, que lhe imobilizou o corpo. Como só mexe a cabeça e o pescoço, pinta com a boca desde 1982.
Hoje, pela primeira vez, irá expor fora do HC. Às 19h, estará na Estação Especial da Lapa para divulgar 67 quadros, todos produzidos com tinta acrílica.
As telas, sempre figurativas e muito coloridas, elegem temas "românticos", como define Eliana: crianças, plantas, frutas, praias e rios. O que a pintora não pode ver de perto retrata com base em fotografias ou cartões postais.
Às vezes, os quadros ganham tons oníricos. Há um, batizado de "Sonho Impossível", que mostra uma moça colhendo flores.
Outras vezes, as pinturas são de um realismo desconcertante. Em "Minha Janela", por exemplo, Eliana reproduz a copa de uma árvore e cinco vasinhos -o cenário que avista da cama onde passou quase toda a vida.
A jovem artista ocupa uma suíte de 24 m2 no Instituto de Ortopedia e Traumatologia do HC. Reparte-a com Paulo Henrique Machado, também vítima de paralisia infantil. O "quarto A 123" -como médicos e enfermeiros costumam identificá-lo- fica na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), mas não lembra muito um hospital.
Dispõe de TV por assinatura, aparelho de som, fax, computador, linha telefônica privativa, frigobar e forno de microondas. Bichinhos de pelúcia e bonecos de louça amontoam-se pelos cantos.
Próximo à cama de Machado, repousam um pôster do piloto Ayrton Senna e um quadro com o ônibus espacial Discovery.
Em função da extensa paralisia, Eliana não consegue se manter sobre cadeiras de roda. Tampouco respira por mais de seis horas sem o auxílio de um respirador (ou pulmão artificial). Permanece atrelada à máquina praticamente todo o dia.
O governo do Estado financia os dois pacientes, de origem humilde. A assessoria de imprensa do HC diz que a instituição, com 2.000 leitos e orçamento de R$ 230 milhões por ano, não sabe estimar o custo isolado do quarto A 123.
Também informa que a pintora e Machado são os únicos moradores do complexo hospitalar, o maior da América Latina.
Desde dezembro de 1996, a dupla recebe uma pensão mensal do INSS, R$ 120 para cada um. Com o dinheiro, além de pagar a conta do telefone e a TV por assinatura, compram pizza e comida chinesa.
Em duas décadas, Eliana deixou o HC raras vezes -"mais de dez e menos de 20", calcula.
A manobra, delicada, exige dois torpedos de ar comprimido, uma ambulância e a presença permanente de um médico, um enfermeiro e um gasoterapeuta, o responsável pelos tubos de oxigênio.
Quando sai, vai à casa de amigos e igrejas. Católica, acredita "profundamente" em Deus. Um Deus que lhe tirou os movimentos, mas conserva a suíte do HC "sempre repleta de gente".
Não são apenas funcionários do hospital -que Eliana chama de "tios" e "tias". Há ainda duas professoras de arte, que trabalham como voluntárias, e uma de primeiro grau, paga pelo Estado.
No quarto, já estiveram até os cantores Fábio Jr. e Zezé di Camargo. A paciente pediu e eles foram.
"A boca e os dentes são minhas relíquias", costuma repetir Eliana, que também os usa para escrever cartas à família.
Seus pais -um pedreiro aposentado e uma dona-de-casa- vivem em Guariba (SP) e costumam visitá-la uma vez por semestre.
Recentemente, aprendeu a mexer na Internet. "Tenho, agora, dois sonhos." O primeiro é ganhar um notebook. O outro é o de sempre: conhecer o mar.

Exposição: Artes Mais Belas
Onde: Estação Especial da Lapa (rua Guaicurus, 1.279, zona noroeste de SP)
Quando: hoje, das 19h às 21h
E-mail de Eliana: elianaz@hotmail.com

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