São Paulo, sexta-feira, 5 de dezembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A máscara de Irons

LAURENT RIGOULET
DO "LIBÉRATION"

No primeiro instante, não dá para levá-lo a sério. A fala de Jeremy Irons, sua voz baixa e um sotaque de Oxfordshire são ciladas nas quais facilmente se pode cair.
Será que ele é capaz de repetir? "Um papel que muito me acrescentou nestes últimos anos foi o de Scar, em 'O Rei Leão', de Walt Disney", repete o ator britânico.
Pára por um instante para refletir e olha para o cinzeiro que colocou à sua frente para apagar os cigarros que fuma sem cessar.
E diz: "Fiquei surpreso de ver como era capaz de fazer um personagem apenas com a voz. De constatar até que ponto me sentia liberto para atuar sem que me vissem".
Os estúdios Disney escolheram o ator, que completou 49 anos no último dia 19 de setembro, também por sua aparência. O leão astuto e tirânico para o qual ele empresta a voz foi desenhado à sua imagem -"seu olhar sombrio e seu cabelo sempre me intrigaram", diz um dos autores do desenho.
E pensar que um decano de escolas de teatro, no final dos anos 70, havia previsto ao jovem Jeremy que sua pálida figura, distinta e magnética -a mesma que faz com que seja tratado como estrela e recebido como milorde em clubes da Inglaterra- o deixaria ao largo do sucesso.
Dizia o professor: "Nos anos 30, você teria feito sucesso. Mas sua cara não combina com a época. Muito fina. Muito requintada".
Alguns anos mais tarde, Jeremy Irons triunfava em Los Angeles (que ele pronuncia "Los Angelise") e recebia um Oscar por "O Reverso da Fortuna".
Hollywood o pressionava há muito tempo para que se instalasse na América e ali se tornasse "o novo David Niven".
Ele resistiu. E explica com uma metáfora: "Você sabe como é arriscado arrancar uma árvore para replantá-la em outro local".
Essas precauções não o impedem de encarnar "ad nauseam" o mesmo personagem totalmente inglês: vagamente dândi, de uma rigidez charmosa e quase doentia.
Seu gosto pelo desafio e pela exploração de situações-limite colocaram em sua carreira fronteiras que ele sofre para cruzar.
Em "Chinese Box" (Caixa Chinesa), novo filme do diretor Wayne Wang ("Cortina de Fumaça"), Irons é um jornalista britânico que vive os últimos dias da administração britânica em Hong Kong. Uma interpretação mecânica, que ele pouco defende.
"Não me dediquei a um trabalho muito profundo para esse filme. É um pouco estereotipado, não traz nada de novo. Já utilizei muito esse registro: a paixão da qual não se consegue escapar, que corrói e destrói", diz.
E acrescenta: "Quando adolescente, pensava que atuar poderia ajudar a me exteriorizar. Hoje já explorei demais as fraquezas e os recôncavos obscuros dos personagens. Quero acreditar que 'Chinese Box' e 'Lolita' sejam meu canto do cisne nesse tema".
Há três anos, ele já queria acabar com o estereótipo de britânico requintado. Trancou-se em uma sala de musculação e "enloirou" para fazer o malvado de "Duro de Matar 3", ao lado do ator americano Bruce Willis. Mas a experiência não agradou.
Ele sempre fez questão de não se definir. Criança de uma família financeiramente estável, Jeremy Irons tinha dom para música.
"Viajava" ao som de seu violino, em plena beatlemania, e se apresentava com seu violão, tocando Peter, Paul and Mary, Donavan e Dylan nas saídas das salas de cinema de West End.
Teve seu primeiro papel como São João Batista em "Godspell", comédia musical de sucesso. Sentia-se feito para o gênero e pensava em aí permanecer.
Mas alimentava também a idéia romântica de ator saltimbanco -"que chega em uma cidade, atua, janta, ama e parte para outros céus".
Acabou por conquistar um papel em "A Mulher do Tenente Francês" (1981). Sem entretanto se satisfazer com a carreira que surgia e que culminou com sua dupla interpretação em "Gêmeos - Mórbida Semelhança" (1988), de David Cronenberg.
Durante os anos 80, ele ainda se impunha no teatro. Era ovacionado todas as noites na Broadway, mas tinha uma certa inquietação.
"Recebia mais elogios do que merecia. Apresentavam-me como o futuro Laurence Olivier e eu me sentia um pouco atordoado. Não tinha mais a percepção exata do que fazia", comenta.
Voltou então, sem demora, a Stratford-upon-Avon, "por instinto de sobrevivência", diz. Para representar Shakespeare, ser julgado por seus pares e ver revelados os seus limites.
Sua exigência e sua inquietação no trabalho se tornaram lenda. "Sou impossível", disse recentemente a uma rede de televisão francesa. "Não sou colérico, mas duro e decidido com a equipe e coadjuvantes", completou Irons.
No início das filmagens de "Gêmeos", ele utilizou dois camarins, para poder passar de um personagem a outro. Estudava de maneira compulsiva o efeito de cada droga.
Na vida pessoal, ele diz sempre ter evitado os excessos que nas telas representa de forma tão convincente. Uma vida familiar equilibrada, uma esposa (a atriz Sinead Cusack), dois filhos, equitação, jardinagem... "Sempre senti necessidade de manter o controle."
Para sufocar esse pesadelo que se parece com seus papéis e que surge constantemente? "Vejo-me abandonando e destruindo tudo por alguém que me atraia e que acaba por me rejeitar. Isso me arrepia."
Só resta olhá-lo acender um cigarro atrás do outro, em um ritmo frenético, justamente quando recomeça a fumar para transparecer a personalidade compulsiva que calmamente desenha.
Nas filmagens de "Lolita", ele não fumava. Mas nunca se separava de seu violão e, entre as tomadas, buscava incansavelmente dominar o estilo dos monstros do blues de Nova Orleans.
Para manter a esperança de que uma novidade é sempre possível, ele vai se afastar do cinema para um ano sabático. Está recrutando 20 homens para tornar habitável um castelo na Irlanda, cujas paredes não vêem vivalma desde 1602.
David Puttman, amigo e produtor, está perplexo. "Eu me achava louco, mas você perdeu completamente as estribeiras", disse.

Tradução Luiz Antonio Del Tedesco

Texto Anterior: Auto de Natal e teatro animam Jardim Botânico no domingo
Próximo Texto: Ator é o britânico necessário ao cinema
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.