São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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Mais calor do que luz...

ROBERTO CAMPOS

A discussão da crise das Bolsas, que teve como epicentro a Ásia, virou mistura de polêmica, boataria e balbúrdia, com gente voltando a puxar briga com a "globalização", o "neoliberalismo", o "capitalismo selvagem" e todos os frangalhos de ideologia ainda sobrando por aí. O tema continua a gerar muito mais calor do que luz. Vamos ver se dá para pôr um pouco de ordem nas informações e nas idéias, porque, afinal de contas, este não é o melhor momento para mais confusões.
O que houve, como, aliás, disse à "Der Spiegel" James Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, foi, antes de mais nada, uma crise bancária, como outras cem que aconteceram nestes últimos dez anos (no curso dos quais ativos de US$ 250 bilhões se evaporaram), e como outras que indubitavelmente tornarão a ocorrer.
Wolfensohn não acredita em uma "gripe asiática". Descartou também o risco de uma crise mundial como a que ocorreu a partir da queda das Bolsas em 1929. Faz notar que, quando o peso mexicano se precipitou no poço em 1994, e o "efeito tequila" se alastrou pela América Latina, muitos pensaram que o desastre estava à vista. No entanto, as coisas acabaram se aquietando. O mesmo será o caso na Ásia. E pode ser que a crise tenha certas virtudes curativas.
É claro que o leitor mais cético vai achar que o presidente do Banco Mundial não poderia dizer outra coisa. Mas o fato é que as opiniões das cabeças escoladas no assunto tendem a convergir. Não resta a menor dúvida de que a crise dos mercados financeiros foi devida aos sérios erros econômicos cometidos por alguns países asiáticos e à relutância dos políticos em tomar, em tempo, as medidas adequadas para corrigi-los.
A Tailândia, por exemplo, manteve uma taxa de câmbio excessivamente alta, e seus bancos foram buscar dinheiro (mais de US$ 40 bilhões) em créditos não garantidos nos mercados de capitais internacionais. Seu déficit em conta corrente chegou a 8% do PIB. Deve ser reconhecido, naturalmente, que, em países em desenvolvimento com sistemas bancários pouco amadurecidos, a rapidez da globalização e da desregulamentação dos mercados financeiros pode ter tido efeitos perturbadores. A desregulamentação deveria ter sido acompanhada de intensa vigilância, para evitar que os bancos tomassem recursos excessivos a descoberto ou concedessem grandes empréstimos para operações duvidosas.
Por outro lado, essa seria essencialmente uma tarefa interna, não internacional. Será que alguém neste nosso país (que há apenas dez anos se deu à onerosa diversão de uma "moratória soberana") achará que organismos internacionais e os países mais ricos poderiam tentar obrigar as economias "emergentes" a praticar uma rigorosa dieta monetária e fiscal, sem provocar uivos de indignação contra o "imperialismo"?
A Tailândia, que foi a iniciadora da crise, ainda em julho, foi a primeira a dar mau exemplo. Voltou atrás de um impopular imposto sobre o petróleo que o FMI estava recomendando, o que provocou a renúncia do ministro de Finanças, Thanong Bidaya. E nada de decisões firmes, salvo a suspensão do funcionamento de 58 instituições financeiras. O pouco popular primeiro-ministro Chavalit Yongchaiyudh reanimou um pouco o mercado, mas a tendência era esperar até depois das novas eleições, no ano que vem, a serem realizadas sob uma nova Constituição, que pretende acabar com a compra de votos e o clientelismo...
Tendo sobrevivido às duas primeiras ondas da crise, as lideranças políticas asiáticas teriam de pensar nas reformas estruturais duras e penosas necessárias à recuperação da competitividade das suas economias, abaladas pela desvalorização do iene e pela concorrência chinesa.
Essas medidas deveriam incluir a quebra dos monopólios, o fortalecimento dos sistemas financeiros e o melhor uso dos recursos para investimentos. Mas ainda não se enxerga muita disposição. E o próprio Japão, cuja economia continua em marcha lenta e que deveria optar por uma abertura externa mais franca, não tem passado de medidas anêmicas, até engraçadas, como a proposta de acelerar a desregulamentação das tarifas sobre chamadas telefônicas de longa distância... E a outra grande potência econômica do Extremo Oriente, a Coréia, voltou atrás das suas repetidas promessas de reduzir seu intervencionismo no funcionamento do mercado.
A Indonésia parece que levou um susto maior, e recorreu a um pacote montado pelo FMI (US$ 32 bilhões, quase o dobro da ajuda concedida à Tailândia). Em contrapartida, vai acabar com monopólios politizados, dar um aperto no sistema bancário, reduzir subsídios e baixar tarifas externas. Isso facilitou a vida de Cingapura e da Malásia, cuja prosperidade estava muito interligada à saúde econômica da região.
Mas, andam perguntando alguns, que é que nós temos com isso? Por que as confusões bancárias e das Bolsas do outro lado do mundo estão repercutindo tanto do lado de cá? Um piadista americano chamou a coisa de "globalização galopante". Num mundo estreitamente interligado, em que investidores de todas as partes do mundo, diante dos seus computadores, usando comunicações globais instantâneas, podem investir seu dinheiro em qualquer coisa -títulos, ações, imóveis, empresas, moeda alheia-, procurando os negócios mais vantajosos, o contágio é como entre a criançada no colégio.
Atualmente, todos os dias, as transações monetárias internacionais andam em US$ 1,3 trilhão, cifra que cresce 12% ao ano e é o equivalente a 85% de todas as reservas cambiais do mundo. E o movimento com ações estrangeiras está em cerca de US$ 25 bilhões por dia, crescendo 25% por ano.
Em 1980, nos países altamente industrializados, as transações internacionais em títulos e ações não passavam de 10% do seu PIB. Em 1995, alcançavam 100%. Os investimentos diretos não ficam atrás. Só os de empresas ocidentais em países em desenvolvimento explodiram de US$ 50 bilhões em 1990 para US$ 336 bilhões no ano passado. Os asiáticos estavam recebendo quase tanto em investimentos quanto os Estados Unidos, cuja economia é cinco vezes maior!
Grandes oportunidades costumam andar junto de grandes riscos. Na Tailândia, na Malásia, na Indonésia e nas Filipinas, por exemplo, os setores financeiro e imobiliário representavam 25% da capitalização do mercado de ações, e foi a falta de base do boom imobiliário que precipitou a crise. Crises de outras origens têm espoucado nos países industrializados: por exemplo, a do estanho, em Londres, em 1985; o crash das Bolsas mundiais em 1987; a vacilada de 1992-93 no contexto do Sistema Monetário Europeu; o colapso do México em 1995; o escândalo do Banco Barings em 1995, e as perdas da Sumitomo em 1996.
Em resposta, vêm ocorrendo importantes mudanças reguladoras nos mercados e serviços financeiros. Mas é preciso que o remédio não mate o doente. Apesar da percepção internacional de nossa vulnerabilidade, o Brasil tem uma economia robusta, bastante industrializada, com instituições modernas, e a orientação seguida desde o Plano Real tem sido consistente. Podem ser discutidos pontos técnicos, mas uma coisa é inegável.
No Brasil, o risco financeiro de curto prazo é bem maior que o risco econômico de médio e longo prazo. Conseguimos, inclusive, sem trancos desestabilizantes, sanear os bancos. Mas houve excessivo gradualismo no ajuste do setor público como um todo. Isso impõe um enorme estresse às âncoras cambial e monetária. E nos obrigou agora a mostrar dureza para convencer o sistema financeiro internacional de que temos vontade política de dar resposta adequada ao terremoto asiático.
Talvez alguns tenham saudades da economia fechada e da estatização geral. É uma opinião como outra qualquer. Mas não é a da maioria dos países em desenvolvimento, 70% de cujos fluxos de comércio, inclusive da China, obedecem ao artigo VIII do acordo do FMI, que veda restrições de pagamentos correntes sem aprovação do Fundo. São mais de cem países, hoje, nesse regime, o dobro de meados da década passada. Quem não se comunica globalmente se trumbica localmente...

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