São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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Os talentos de Hitler

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
DE WASHINGTON

A revista "Time" está empenhada em resolver um grande problema: achar o "homem do século" para a capa de sua última edição de 1999. A questão é insolúvel por excesso de bons candidatos.
Mas, se ela tivesse resolvido encontrar o "vilão do século", a tarefa seria muito mais fácil. Adolf Hitler bate, de longe, todos os possíveis concorrentes. Ele foi o responsável pelo Holocausto, pela Segunda Guerra Mundial, pela perseguição cruel de ciganos, homossexuais e comunistas na Alemanha e nos países que ela ocupou.
Na imaginação coletiva mundial, Hitler é visto com um louco, o produto de forças do mal, um bufão, um tirano que conseguiu hipnotizar o povo mais culto do mundo.
O historiador húngaro (criado na Inglaterra) John Lukacs acaba de publicar "The Hitler of History" (O Hitler da História, Knopf, 279 págs., US$ 26) para tentar demonstrar que essa visão idealizada não se sustenta nos fatos e é nefasta para o futuro.
Ninguém poderia chegar até onde Hitler chegou sendo um bobo, um anormal. Ele tinha que ter méritos, e muitos, como político, estrategista militar, ate mesmo ser humano, para governar a Alemanha, conquistar a Europa e ganhar a admiração e a lealdade de dezenas de milhões de pessoas pelo mundo afora. "Deus deu a Hitler muito talento e força; exatamente por isso é que ele foi responsável por tê-los usado mal", diz Lukacs.
Demonizar Hitler é eximi-lo de responsabilidade, argumenta ele. Mais ainda, considerá-lo o anticristo, um fenômeno acima da compreensão, um diabo metafísico, também significa isentar todos os que o ajudaram a conquistar e manter o poder e deixar aberta a porta para que outros demagogos parecidos venham a ter êxito.
O trabalho de Lukacs foi revisar mais de cem biografias de Hitler publicadas depois de sua ascensão ao poder, compará-las e tirar conclusões sobre quem foi esse homem. Com isso, ele pretendeu fazer avançar a historicidade de Hitler, mostrar que ele é parte da história da Alemanha, não uma força externa malévola e inexplicável.
Os alemães parecem prontos para esse tipo de enfrentamento. O instigante livro de Daniel Goldhagen, "Os Carrascos Voluntários de Hitler", que defende a tese de que os carrascos nazistas não apenas obedeciam ordens, mas faziam o que consideravam certo, foi surpreendentemente bem recebido no país.
Para Lukacs, Hitler foi um pintor talentoso e um arquiteto em potencial; corajoso, leal aos amigos, autodisciplinado; tinha memória prodigiosa; conseguiu extraordinárias conquistas sociais nos primeiros seis anos de governo, durante os quais proporcionou prosperidade e confiança aos alemães.
Se tivesse morrido em 1938, como aliás temia, Hitler talvez viesse a ser encarado até hoje como um herói pela maioria dos alemães, segundo Lukacs. Ele acabou com a inflação e com o desemprego, reformou a agricultura, introduziu benefícios sociais aos trabalhadores (inclusive férias remuneradas), deu a crianças e adolescentes pobres acesso a esportes e turismo.
Em consequência, a taxa de fertilidade no país cresceu 50% em quatro anos, os índices de casamento se tornaram os mais altos da Europa em 1938 e o número de suicídios caiu 80% entre 1933 e 1939. A fidelidade dos trabalhadores alemães a Hitler, na avaliação de Lukacs, foi integral e se manteve até os estertores da guerra.
Por tudo isso, Lukacs se recusa a ver em Hitler um conservador. De acordo com ele, Hitler foi um "populista revolucionário" que usou os conservadores quando precisou deles para subir ao poder, mas nunca seguiu seus ditames.
"Hitler pertence à era democrática da história, não à aristocrática. Ele não pode ser comparado a César, Cromwell, Napoleão. Profundamente diferente deles, ele foi, mais do qualquer um deles, capaz de energizar a maioria de um grande povo..., convencendo-a a seguir sua liderança", escreve Lukacs.
Mesmo o Estado policial instaurado pelos nacional-socialistas no país a partir de 1933 não era tão absolutista quanto se tornou comum acreditar depois, segundo Lukacs. Quem não era judeu, cigano, homossexual ou comunista gozava de "surpreendente" liberdade de movimentos e mesmo quem estava na lista da polícia como suspeito de tentativa de derrubar o regime podia viajar para o exterior pelo menos até o início da guerra, diz.
Lukacs tenta complexificar a figura de Hitler sem cair na armadilha de lhe parecer simpático. Mesmo assim, a simples constatação dos méritos do Führer lhe tem rendido críticas azedas em círculos intelectuais que, até este trabalho, sempre se haviam rendido a seu incontestável poder intelectual.
No entanto, apesar disso, o trabalho de Lukacs e outros que, recentemente, têm mostrado o fenômeno Hitler como um processo histórico e cultural que teve mais a ver com os desejos e aspirações da maioria dos alemães na década de 30 do que se gostaria de admitir é importante, não só para a Alemanha como para todos os países.
Richard Nixon, Fernando Collor de Mello, Augusto Pinochet, Juan Domingo Perón, Francisco Franco não foram aberrações da história de seus povos. Foram resultado dela. Os que não entenderem isso estarão condenados a repeti-los.
Onde encomendar:
"The Hitler of History", de John Lukacs, pode ser encomendado em São Paulo à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4033) e no Rio de Janeiro à Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124, tel 021/294-5994).

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