São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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O século das guerras

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pierre-Marie Gallois foi piloto de bombardeio na aviação inglesa (RAF) durante a Segunda Guerra Mundial, pois a França de Charles de Gaulle, que lutava no exílio contra a Alemanha nazista, não tinha aviação. Depois da guerra, continuou a carreira militar, tornando-se conselheiro de De Gaulle (1958 a 1969). Desenvolveu igualmente uma carreira de analista de estratégia, introduzindo nesta área o conceito "resposta do fraco ao forte".
Publicou vários livros, entre os quais "A Estratégia da Idade Nuclear" e "Uma Geopolítica - O Sangue do Petróleo", em que analisa os conflitos iugoslavo e iraquiano.
A entrevista a seguir foi concedida por ele em seu apartamento de Paris. Nela, Gallois conta a sua experiência na Segunda Guerra e fala das duas formas atuais da guerra -a de "zero perdas", feita pelos Estados Unidos no Iraque, e a terrorista, característica dos países pobres. Ele também trata dos riscos da hegemonia americana e defende a necessidade de o Brasil construir a bomba atômica a fim de garantir seu desenvolvimento socioeconômico.
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Folha - O sr. foi conselheiro militar de De Gaulle. O que pode a vontade, a determinação em uma guerra?
Pierre-Marie Gallois - Não fui conselheiro militar permanente de De Gaulle. Convenci-o, em maio de 1956, a desenvolver uma política nuclear para a França. Foi um general americano de quem eu era adjunto que me deu a idéia de ir falar com De Gaulle. Havia mostrado àquele general uns mapas, com os quais eu explicava que, em virtude do surgimento de armas russas de longo alcance, a guerra entre russos e americanos ia desaparecer, e os americanos já não iam entrar numa guerra só por causa dos europeus. Portanto os europeus precisavam se defender sozinhos. Não conheci De Gaulle durante a guerra, só depois.
Seja como for, a vontade na guerra é fundamental, pois esta é o choque de duas vontades, a do agressor e a do defensor. Nos anos 50, por exemplo, a URSS queria ter um controle sobre a Europa por temer que o seu sistema de educação social não resistisse à comparação com um outro sistema mais liberal. Existia assim a vontade soviética de exercer uma influência por intimidação, ou mesmo pela força das armas, e, do lado oposto, uma vontade de defesa total. A França, que havia sofrido por causa da invasão alemã, queria evitar de qualquer jeito uma outra invasão.
Na situação de não-guerra dos anos 50 -imposta pelo medo respectivo do recurso ao átomo- havia o afrontamento de duas vontades. Com as armas nucleares, o risco que o agressor e o defensor correm é multiplicado por cem. Já não se trata de enviar um corpo expedicionário contra um outro. Trata-se da destruição total de um país. Com isso, a vontade de resistência é multiplicada por cem.
Folha - O sr. participou da Segunda Guerra. Gostaria que me dissesse o que a guerra lhe deu.
Gallois - A guerra me propiciou o contato com homens extraordinários em matéria de coragem, de abnegação, de sacrifício. Homens que eu admirava e gostaria de igualar. Pertenci a uma unidade de bombardeio noturno, em que havia muitas perdas. Dois terços dos meus companheiros morreram. Corríamos um risco imenso, mas mesmo assim partíamos. A guerra me fez admirar este ser humano que é capaz de se ultrapassar, de repentinamente abrir mão do apego às coisas materiais e ir em frente -sabendo que a matemática é inelutável e dois terços dos que forem não voltarão.
Folha - O sr. é um dos inventores do conceito estratégico "Dissuasão nuclear todos azimutes como resposta do fraco ao forte". Seria possível explicar em que consiste este conceito e quais foram os seus efeitos na política do general De Gaulle?
Gallois - Me dei conta, nos anos 50, que a capacidade de destruição de um grupo pequeno de gente podia ser considerável e portanto não era preciso ser muito numeroso para ser intimidante. A noção de superioridade e de inferioridade numérica, que havia sido a regra durante dois milênios, desapareceu com a introdução do átomo. Com poucas armas nucleares tornou-se possível fazer uma quantidade insuportável de mal.
Calculamos que os Estados Unidos tinham 50 aglomerações críticas, a Rússia 48, a China 52 e concluímos que bastavam 100 bombas para que a França enfrentasse os Estados Unidos, a Rússia ou a China... Nós, os mais fracos, estávamos em condições de desempenhar um papel importante pela quantidade de mal que podíamos fazer.
Tal idéia estava ligada a uma outra, a dissuasão proporcional. Sendo um país médio, a França só precisava fazer um pouco de mal à Rússia expansionista para que esta não a atacasse. Expliquei isso ao general De Gaulle e ele me disse que eu estava certo: "- Sim, basta amputarmos um braço do inimigo, não é necessário cortarmos a sua cabeça".
Folha - Na segunda metade do século, houve a dupla dominação dos Estados Unidos e da URSS no mundo, até a queda do muro de Berlim. O século termina com uma dominação militar exclusiva dos Estados Unidos. Quais os perigos desta hegemonia?
Gallois - A questão é muito interessante. Com o desmoronamento da URSS e o fato de que a América tenha se tornado a única superpotência, povos da Europa central se tornaram independentes. A independência destes países é positiva, claro. Já a superioridade americana não. Os Estados Unidos gastaram muito dinheiro para evitar a expansão soviética e agora querem ocupar mais espaço no mundo para que a sua potência se perpetue -sabem que ela não será eterna.
Um dos efeitos da hegemonia americana é a guerra do Iraque. A ocupação do Kuait foi um erro, mas a punição infligida ao Iraque não é proporcional ao seu crime. O número de mortes causadas pelo embargo ultrapassa um milhão de pessoas, que são obviamente as mais fracas, os velhos e as crianças... Trata-se de um crime contra a humanidade e ele continua. No início, a meta dos Estados Unidos era neutralizar um país considerado perigoso. Agora, é impedir que o Iraque venda petróleo para o preço no mercado não baixar. Por causa do petróleo, muitas e muitas crianças estão morrendo.
Folha - E a Iugoslávia?
Gallois - Os alemães queriam a guerra. Por quê? Porque a Iugoslávia foi criada depois do Tratado de Versalhes (1919), assinado sobre as ruínas da Alemanha, e os alemães simplesmente queriam apagar tudo que se seguiu ao tratado. Queriam punir os sérvios -os aliados dos americanos, dos ingleses, dos franceses nas duas guerras mundiais- e recompensar a Croácia, que ficou do lado alemão durante a Segunda Guerra.
Os Estados Unidos poderiam ter pedido uma certa moderação à Alemanha e eles não o fizeram. Os sérvios foram bombardeados durante 15 dias pela força aérea americana e a destruição foi imensa. E agora os americanos estão armando os bósnios muçulmanos. Os Estados Unidos na verdade contribuíram indiretamente para formar mais um Estado muçulmano nos Bálcãs -já existia a Albânia. Isso evidentemente contraria os interesses europeus.
Folha - Por que os americanos agiram desta maneira?
Gallois - Por considerar que deveriam estar em bons termos com todos os países do Islã, que se estende do Pacífico ao Atlântico e ocupa um território energeticamente muito rico. O Islã é um mercado e uma fonte de energia. Consequentemente, os Estados Unidos se empenharam em criar a Palestina, deram aos muçulmanos a Tchetchênia e incentivaram a criação de um Estado muçulmano no coração dos Bálcãs. Uma política inteligente do ponto de vista americano, mas que não convém à Europa.
Folha - Gostaria que o sr. falasse dos tipos possíveis de guerra na atualidade.
Gallois - Há dois tipos de guerra de coerção. Uma é muito evoluída. Poucos homens valendo-se de armas muito eficazes.
Trata-se de uma guerra de especialistas que não se expõem e só destroem à distância, ou seja, sem correr risco algum, porque é a noção de "zero perdas" que impera. Perdemos tanta gente, que agora atribuímos muito valor à vida humana. Lembre-se da palavra de ordem de Clinton na Iugoslávia: "Nenhum só homem morto".
No outro extremo do registro da violência, existem os povos que ainda estão dispostos a expor os seus filhos à morte. São menos desenvolvidos industrialmente e se valem de todos os procedimentos, como a guerrilha ou o terrorismo.
Folha - Observa-se que nunca houve conflito grave entre dois países de democracia liberal. O sr. aceitaria a idéia de que o mundo poderia se apaziguar se todas as nações passassem à democracia liberal?
Gallois - Certamente, porque a guerra hoje dispõe de meios inteiramente novos. Nós podemos, por exemplo, utilizar a televisão e divulgar uma imagem negativa do país que se quer maltratar. Os espectadores serão rapidamente convencidos dos vícios e defeitos de um tal país. Além disso, é possível agir por meio do bloqueio econômico. Uma população faminta tende a se enfurecer contra o dirigente, derrubá-lo. Existem procedimentos coercitivos que excluem o derramamento de sangue e que as democracias liberais podem utilizar.
Folha - Com as armas nucleares, a guerra mudou de natureza. Gostaria de saber se, além do seu efeito dissuasivo, estas armas tornam os chefes de Estado mais prudentes e mais responsáveis.
Gallois - Claro, por razões pessoais. Não por razões altruístas. Nos conflitos de antigamente, os homens de Estado enviavam as tropas, porém não corriam riscos. Havia uma tendência a usar a força com mais facilidade. Hoje, com as armas nucleares, isso acabou. Associado a foguetes balísticos, elas têm efeitos terríveis. Hiroshima e Nagasaki ensinaram o medo às populações civis. Tornou-se evidente, a partir de então, que estas populações eram as principais atingidas. Ficam mais expostas do que os combatentes. Os que trabalham nos submarinos e navegam pelos mares estão hoje menos ameaçados do que os moradores das cidades. É normal estes fazerem pressões sobre os governos para que sejam mais prudentes.
Folha - Estados que possuem a bomba atômica se opõem ao fato de que outros a adquiram, alegando que temem o risco de disseminação da bomba entre países como a Líbia, o Irã ou a Síria, por exemplo. O que o sr. acha desta oposição?
Gallois - Acho que é racional e egoísta. Os Estados que possuem a bomba sabem que uma guerra entre eles não é concebível, e eles portanto se beneficiam de um estatuto privilegiado. Não há como imaginar, desde 1945, um conflito real entre a Rússia e a América, ou entre a França e a Inglaterra, por exemplo. Portanto: estabilidade, invulnerabilidade do terrorismo e prestígio. É normal que os outros queiram entrar no clube e dirigir o mundo também.
Pessoalmente, não acredito no argumento segundo o qual os Estados Unidos, a França ou a Inglaterra não usariam a arma nuclear por serem bem comportados, enquanto a Síria e o Paquistão a usariam porque não o são. Acho que o medo da represália tornaria estes povos bem comportados. Mas este medo não os impediria de atacar os vizinhos que não têm armas nucleares.
Folha - O Brasil não participou da Guerra do Golfo, a Argentina sim. A França foi uma das peças importantes da coalizão -ela tinha mesmo interesse nisso ou poderia ter escolhido uma posição análoga à do Brasil?
Gallois - Não tinha nenhum interesse. Só participou porque tem uma diplomacia servil. A França deixou de ser um Estado soberano. Obedeceu aos Estados Unidos na guerra do Iraque e à Alemanha na da Iugoslávia. O meu país agora faz operações que o desservem. A França antes tinha interesse em manter laços privilegiados com o Iraque, que ela armou. Estive lá dando cursos de estratégia nuclear e depois fiquei revoltado com a adesão dos franceses aos americanos. É amoral armar um país, receber dinheiro dele e depois apoiar a sua destruição.
Folha - A Alemanha reunificada ameaça a França?
Gallois - A ameaça que hoje pesa sobre a França não é tanto de ordem militar, mas de ordem socioeconômica. Seja como for, temos um parceiro na Europa, a Alemanha, que pela sua posição geográfica, sua potência econômica, seu dinamismo e a qualidade dos seus homens de Estado é superpoderosa, uma superpotência européia.
Ora, os povos superpotentes abusam do poder, e a Alemanha sempre teve procedimentos inteligentes para materializar a sua força. Agora, vale-se da ideologia da regionalização e prega o desaparecimento do Estado-nação, alegando que os Estados modernos foram feitos pela força da mais importante das suas etnias e cada etnia deve se gerir como bem entender. Só que os alemães todos falam a mesma língua e estão unificados por ela, o que não é o caso dos outros, dos franceses, por exemplo. Somos uns inocentes de pensar que as fronteiras da Europa estão estabelecidas definitivamente.
Folha - A incapacidade que a Europa ocidental tem de resolver o conflito iugoslavo é indicativa da dificuldade de desenvolver uma política européia comum?
Gallois - Mas a Europa não existe. Para que ela de fato existisse, seria necessário que fosse federal, como os Estados Unidos. Isso requer um "federador", e este teria que ser o país europeu mais forte, ou seja, a Alemanha. Depois do que aconteceu, neste século, é difícil depender totalmente da Alemanha que, aliás, já têm a mão posta sobre a economia francesa, a italiana, a belga, a holandesa, a portuguesa...
Folha - O Brasil comprometeu-se a não fabricar a bomba. O que o sr. pensa disso?
Gallois - Acho que está errado.
Folha - Por quê?
Gallois - No atual estágio do desenvolvimento da América Latina o que mais conta é a economia, mas é preciso que esta não seja ameaçada por forças hostis. A economia brasileira corre o risco de uma forte ingerência americana. Se o Brasil quiser entrar no clube das grandes nações, vai ter que se tornar uma potência nuclear. Os países asiáticos já estão se preparando para isso.
Folha - O Brasil tem uma tradição pacifista...
Gallois - O Japão também, só que o Japão é vizinho dos chineses, enquanto o Brasil não tem vizinhos ameaçadores... Seja como for, deveria se tornar uma potência nuclear, para mostrar a sua capacidade científica e entrar logo no clube das grandes nações.
Folha - O sr. acredita, como Freud, que haverá guerra enquanto houver homens?
Gallois - Sim, porque os homens são tolos e não há como mudá-los. Não legitimo a guerra, porém a compreendo porque a vivi, porque os alemães ocuparam o meu país e os judeus foram deportados. Você sabe que eu bombardeava os alemães e, a cada vez, despejava quatro toneladas sobre eles. O resultado eram 300 ou 400 mortos. Mas eu fazia isso porque os alemães estavam na França.
Folha - No fim do século passado, Nietzsche disse que o século 20 seria o século das guerras. Como o sr. vê o século 21?
Gallois - Quando mais desenvolvidos nós nos tornamos na Europa, mais guerra fizemos. Resta saber se os países asiáticos, agora altamente desenvolvidos, vão se industrializar valendo-se da sabedoria oriental ou fazendo a guerra como nós. Há causas de conflito, 1,4 bilhão de chineses que não têm fonte de energia suficiente para se desenvolver. Além de resolver a questão energética, seria preciso fazer tudo pelo nuclear. Só que existe uma campanha contra isso, feita pelos produtores de petróleo. Outra fonte grave de conflito é a alimentação, que certamente vai faltar.

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