São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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Paisagens anteriormente anônimas

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por onde se extravia o pensamento? É uma pergunta que o próprio poeta se faz, num dos poemas de "A Letra Descalça" (1985). E ele mesmo responde, à sua maneira, num daqueles pontos característicos onde pensamento e linguagem se confundem e os versos se voltam sobre si: "A linguagem quer retrançar no avesso a sua trama". No livro seguinte, "Poros" (1989), a resposta seria virtualmente oposta: "O lamento da literatura em seus gorjeios e trinados... é um vento aventureiro desfazendo tranças". Mas "trança rimas sempre -o poeta", como escreveu Nietzsche, com ironia, num poema traduzido por Rubens Rodrigues Torres Filho dez anos antes de "A Letra Descalça" e dez anos depois de seu primeiro livro ("Investigação do Olhar").
Essa e outras tranças podem ser acompanhadas de perto, agora, num único volume ("Novolume"), reunindo os 5 previamente publicados, mais 12 poemas novos (1994-97), alguns avulsos e inéditos, e 11 traduções exemplares. A tentação de ler cada livro à luz dos outros é natural numa coletânea dessas; a cronologia não é uma lei da poesia, mas ninguém escapa do sentido de narrativa pessoal criado pela simples ordem de um livro atrás do outro. Não é menos natural se fixar em contradições como a do parágrafo acima. Mas nesse caso, ao menos, as contradições fazem parte de uma lógica particular, que não se altera fundamentalmente ao longo de 34 anos de poesia e que vem nutrindo, esse tempo todo, as mutações e renovações de um dos maiores poetas brasileiros da atualidade.
As metáforas mudam, mas não há um comentador que não se aproxime desse núcleo secreto, ou nem tão secreto da poesia: para José Paulo Paes, é um jogo entre "face oculta" e "face visível"; para Julio Castañon Guimarães, são os "nós entre linguagem e realidade" que os poemas estão sempre fazendo e desfazendo; Aguinaldo José Gonçalves, na orelha do "Novolume", fala da consciência do pensamento pela imagem; e Fernando Paixão, em seu ensaio introdutório, descreve uma entrega ao pensamento como "maneira voluntária para se pôr rente 'ao rio das coisas'±" (textos que podem ser consultados num bom site da Internet, leia ao lado).
Ninguém deixa de ler, então, essa poesia do pensamento de Rubens Rodrigues Torres Filho (o que é quase previsível, quando se pensa na sua carreira de professor, historiador, tradutor e editor de filosofia). Menos frequente é a percepção de que este é um problema e não uma solução, para um poeta que ouve, ou quer ouvir "bater a pálpebra do instante", que tem a ambição de estar presente "nos sulcos do acontecido/ no giro do acontecer" e que tem a coragem de escrever "aqui é sempre este agora", num poema ("O Dia É Mais?", inédito de 1961) que põe em xeque cada uma dessas palavras: aqui, é, sempre, este, agora. "- Onde é aqui? -implora agora/... o que é", reescreve 30 anos mais tarde, com a obsessão de um prisioneiro da linguagem, sem ilusões quanto à possibilidade de fuga.
"Mensch, werde wesentlich": Homem, sê essencial é um mandamento do poeta alemão Angelus Silesius (1624-1677), traduzido por Rubens não só para o português, mas para sua poesia, a despeito ou a respeito de si. Toda poesia moderna expressa o conflito entre um "eu", engajado com a representação da realidade, e uma outra dimensão da literatura, que Yeats chamava "alma", mas que hoje em dia, depois das lições de Benjamin e De Man, é mais conhecida por "alegoria": a substituição infinita dos significados, num reino puramente linguístico.
A tensão entre os dois modos desafia a própria noção de identidade. Quando o poeta banha-se ao "sol gramatical", ou observa o "vôo circunflexo de uma ave", já faz ver até que ponto a experiência é presa da língua. Quando se volta -e são muitas vezes- para a lembrança, ou exortação erótica, dá mostras do que não se pode quando a linguagem aceita sua fraqueza e depõe as armas frente a algo mais simples e maior. A questão é saber até que ponto essa vitória é verdadeira, ou só mais uma ironia.
Um estudioso tão sofisticado do romantismo não escapa nunca dessa trança de autocriação e autodestruição, mas pode multiplicar, à sua maneira, com acentos locais, o mesmo movimento infinito rumo à "liberdade inalcançável". Cioran falava de Jorge Luis Borges como o "Schlegel da Patagônia"; e podemos falar, agora, com o devido senso de medida, do poeta Rubens Rodrigues como o nosso Novalis da praça Vilaboim, votado à poesia da ironia (a favor e contra a ironia) com todo engenho de um mestre do fim do século.
O que, na arte poética do "Vôo Circunflexo" (1981), era um "desespero de gala", tornou-se, na "psiconáutica" de Poros (1989), a "modéstia de gala" do humor. É por frestas assim, nos choques entre palavras e imagens, que passa o sopro divino da malícia, para reinventar por um instante, minimamente que seja, a nossa vida, ou a nossa língua. Essa ironia é uma constante na sua poesia e é bom frisar que não se trata de uma figura de linguagem: é uma condição do texto inteiro. Isso explica, em parte, a desmistificação da forma em poemas que vão vestindo as roupas mais variadas, do soneto ao aforismo, da anedota à meditação, do verso regular à linha livre e à "prosa porosa", ou "respirada", onde o efeito poético fica reservado às "imagens-surpresa" e ao "barroquismo fônico" (ver a entrevista a José Américo Motta Pessanha, na Folha, 12/8/89). O esforço constante é fazer as formas "coincidirem consigo mesmas", para recuperar o "esplendor perdido da identidade". É um jogo de cartas marcadas: o poeta perde sempre para a poesia.
"Se não há fala direta/ em quantas palavras movo/ é como ser um profeta/ dizendo: NADA, de novo" ("Ab Ovo"). Não há contradição no fato do poeta da imediatez ser um artesão de lugares-comuns, palavras banais e "topoi". Sol, lua, peixes, pássaros, flores, frutas, noite, coração: qualquer palavra é a palavra errada certa para dizer o que não pode ser dito.
Vale se atualizar com as crianças: desplugado, ovni, paquerar, ficam lado a lado com dêixis, nardos, anthropos, licantropismo. As referências vão de Marcial ("Como te vejo, Laís? Bocas e olhos sutis... para os imbecis") e Horácio ("Doce na memória, amiga, não cede ao tempo veloz"), passando por Pascal e a tradição conceptista, até, muito especialmente, os românticos alemães, e poetas modernos como Rimbaud ou cummings (ver o poema em inglês "cumming's out", no "Vôo Circunflexo", e sua tradução em "Retrovar"). Sem falar, bem mais de perto, em João Cabral de Melo Neto, cujas cadências se escutam aqui e ali, mas descarrilhadas; em Drummond, ecoando nos jogos semânticos, mas com outro ritmo; e também homenageado numa delicada elegia, em formato de anúncio classificado ) Paulo Leminski, cuja ironia mais popular forma um contraponto com a poesia do "Novolume".
"Cada um encontra nos antigos o que deseja ou precisa -principalmente a si mesmo", aprendemos nos fragmentos de Schlegel (de quem, fora da poesia, Rubens é um grande explicador e editor). Toda essa procissão de fantasmas que habita a sua obra vai se moldando ao som de uma outra mesma música, até que "resta um fio de voz, buscando rumo para o contorno" ("Plano-sequência"), nas falsas "serestas" que se destinam "a nenhum ouvido e dão ao que se cala e ao que nos falta um nome familiar". O nome é familiar, mas estranho, no sentido freudiano; e o poeta é reticente demais, ou sábio demais, para entregar o jogo.
Em momentos menos felizes, a poesia e a ironia descambam para trocadilhos tristes ("niilirismo", "pois ia", "Matissemorfose"; ou o próprio título do livro), que podem, mesmo assim, no contexto, ser lidos como refugo da língua, combinações arbitrárias fracassadas dentro da arbitrariedade geral do fracasso geral da língua. Em momentos menos felizes ainda, mas num outro sentido, o que se escuta está para além dessa bufonaria transcendental, onde a "palavra água" e a "palavra sede" podem ter um "feliz encontro".
Ninguém fica à vontade numa poesia que já adivinha, a cada passo, suas possibilidades. O esforço de Rubens, descrito acima como desmistificação da forma, vai mais longe que isto. Descobrir uma nova vida para as idéias nas palavras já é trabalho bastante e exige uma capacidade rara de desassossego. Nem isso, porém, justificaria essas dezenas e dezenas de poemas aos olhos do próprio autor. Poetas plenamente irônicos estão para além da ironia, e o que se escuta na sua literatura não é contorção e reflexão, comédia e farsa. A cada verso que se apresenta, com o peso da poesia e da experiência nas costas, sobre a parede do fundo dos olhos projeta-se uma outra sombra. Talvez um poeta hoje não tenha mesmo outros meios para fazer ouvir essa dor.
O livro começa como termina (a ordem cronológica é invertida), com um poema amoroso. No último, de 1959, a frustração do poeta jovem, em tons que evocam T.S. Eliot, é ver a vida do corpo passar, projetada na amada inacessível, com seu livro apenas nas mãos. No primeiro, de 1997, aquela imediatez tão perseguida, há tantos anos, parece se realizar, tranquilamente, na confluência de amor, sexo e palavras. Divisões abolidas, dicção apaziguada, o narrador "enceguecido" pelo corpo da mulher chega à simplicidade da "composição", hipnotizado com "a ausência de algas e sereias".
A "imensidão resplandescente e sem arestas" sugere outra voz, que o livro inteiro de certa forma lutou para conquistar. E o livro se abre, então, para trás e para a frente, sugerindo outras felicidades. "Ouve bater a pálpebra do instante." É um som quase impossível, mas que ganha aqui reverberações próprias e um timbre inconfundível. "Paisagens anteriormente anônimas recuam", cobertas pela nova poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho.

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