São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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A desnecessária forma da loucura

ANTONIO MEDINA RODRIGUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O livro de Rose Calza tem um bom título. "Entre Pedaços" pode tanto sugerir a sequência quanto a síntese da vida. No caso, vale mais a síntese, porque o "Entre", que é uma palavra operativa, dá conta dos espaçamentos, dos intervalos e da distribuição da vida, e são estas coisas que metabolizam a vida em poesia. A vida, num poema, não vale como nomeação ou posse. Vale por ser valor. A poesia ou transforma a vida numa essência ou não é poesia. Ela pressupõe uma técnica, toda sua, por meio da qual a natureza transfere-se a si mesma para o mundo dos valores. Ao ler os poemas de Rose, pensei que aquilo que saltava deles, e se generalizava, podia ser fruto direto da condição feminina, porque as mulheres têm o corpo mais próximo da alma, e isso lhes dá certa intuição felina, que dispensa a engenharia dos discursos. Mas não creio que isso seja um argumento. Porque há mulheres que escrevem mal, embora, por natureza, sempre falem bem.
"Entre Pedaços" expressa a agilidade da mulher, com realismo isento de "programa" realista. Ter agilidade é ter a competência natural, é não sobrecarregar com pensamentos o que pode ser resolvido por integração do corpo e espontaneidade gestual. Esse realismo, portanto, não nasce do programa egológico, interesseiro, aquele que Kant fulminou em sua visão do sublime. As dádivas, como a poesia, não são decisões, nem são linguagens. São uma transformação simbólica da natureza, que se deixa passar, como ser puro. A poesia é poesia quando tem alguma coisa que não se reduza a nada mais. Ela é, portanto, porque veio a ser.
Há um primeiro grupo de poemas (infância) que saltam do costumbrismo para o patetismo ("roberto", "a cidade final", "assombração") e que são tramas, de pequenas pinturas, sem sobrecarga narrativa. Lembram um pouco o clima "pau-brasil", onde a próxima palavra é sempre inesperada, mais ou menos como o revelar-se de pequenos paraísos, coisas que irrompem com todo seu frescor e que logo são trocadas por outras. Nos outros conjuntos (são quatro ao todo), a idade e a ironia vão imprimindo suas marcas, mais tempestuosas. Mas a agilidade cega e fenomênica mantém-se. Como num jogo, onde as peças já começam a valer mais como trama do que como infância, paraíso, ambiente.
A estrutura do conjunto se assenta num dinamismo oral, de uma oralidade selvagem, dionisíaca, onde as formas vêm aos borbotões. Para Manuel Bandeira, as vozes das meninas "politonavam". Eis a poesia feminina. Nietzsche falava dos bacantes, que babavam em êxtases de vinho e carne e que, nele, Nietzsche, representavam uma espécie de "vingança" mitológica, refratária, ostensivamente refratária a toda manipulação racional ou filosófica. Rose fica entre essas duas tendências, porém um pouco deslocada.
"Entre Pedaços" é de uma empolgação animal e protetora, porém cheia de finezas: a consciência, chegando a seus limites (porque não quer aceitar seus próprios fins), adquire a perfeição do bicho, espécie de "razão" instintiva e nada metafísica. Essa inteligência sensível tem muito chão pela frente e vai dando tempo ao tempo para fugir aos impasses "temáticos" da existência. Porque sabe que, no fundo, esses impasses são vulgares. Apenas o trabalho é que se escapa do vulgar.
Rose, portanto, adia os conteúdos. Em nome dos processos. Não é mito, é ritual o que ela faz. É nessa dinâmica, é nesse entregar a vida à vida que o sujeito, enfim, se evapora, e o poema essencializa-se. Num poema como "pra você", o amor se colhe não nos tópicos do amor, mas numa gestualidade sábia e não formalizada. Assim, o efeito amoroso, de tão perto e tão sintomático, é quase improferível. O ego busca sua própria indeterminação, e isso só se consegue pela relação imediata com um não-ego, que por sua vez exige de si mesmo a mesma coisa. O amor perde a substância, a temática, vira uma viva relação, sobre a qual nada se pode afirmar, sob pena de perder-se todo fluxo ("sem afirmar nada"). É uma lição sem preceitos, que deriva, tacitamente, do vai-vem dos toques, onde não cabem nomes nem retóricas.
Por vezes, a autora não consegue o mesmo efeito, porque se equivoca ou se trai, e toma por irradiação virginal aquilo que, no fundo, é fogo-fátuo ou hábito da alma. Mas, no conjunto, o livro é de um frescor e de uma liberdade impressionantes. Esse é um livro que descrê do pessimismo que paira entre os poetas da geração mais nova e que preferem (ainda) apostar nos rigores da forma para não correrem os riscos da descontração. Rose, ao contrário, mostra o quanto o poeta se pode engrandecer com sua loucura. As melhores loucuras já vêm prontas. Não é preciso, portanto, procurar-lhes uma forma. Isto seria tão inútil quanto procurar os conteúdos.

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