São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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As diversões imperiais

GORE VIDAL
ESPECIAL PARA A "VANITY FAIR"

Séculos e milênios não passam de marcações arbitrárias, como a contabilidade nos estúdios da Paramount. Simbolicamente, porém, significam muito para aqueles que se interessam em saber por que somos o que somos hoje e estamos fazendo o que estamos fazendo. Isso se aplica especialmente aos "agitadores" e "fazedores" que passaram boa parte deste ano em reuniões, a convite do único país indescartável do mundo -ou será que o presidente Clinton disse indispensável?- e da derradeira potência mundial autodeclarada, carregada de artefatos nucleares, bases e dívidas.
Foram dois parques de diversões: Denver e Madri (onde houve reunião do Grupo dos Sete, em junho, e reunião de cúpula da Otan - Organização do Tratado do Atlântico Norte, em julho deste ano, respectivamente). Nunca se realiza muita coisa quando o diretor administrativo mundial convoca seus diretores regionais para um pouco de festa e diversão. Mas, quando Clinton escolheu um motivo caubói em Denver, com botas para todos os presentes, alguns diretores regionais se atreveram a reclamar. No entanto, eles são facilmente substituíveis, e sabem disso. Mais tarde, as Sete Maiores Potências Econômicas (mais a Rússia) decidiram, em Roma, ampliar a Organização do Tratado do Atlântico Norte para incluir a Polônia, República Tcheca e Hungria.
Jacques Chirac, o diretor francês do... bem, sejamos francos: do império americano... queria que vários outros países do Leste também fossem incluídos, enquanto o diretor russo não queria nenhuma extensão para o Leste de uma aliança militar que ele, erroneamente, ainda pensa ter sido formada para proteger a Europa oriental da União Soviética, louca pelo poder.
Um lanceiro francês
Na verdade, como veremos, a Otan foi criada para que os Estados Unidos pudessem dominar a Europa Ocidental militar, política e economicamente; qualquer ampliação atual significa que mais países e territórios passarão para o controle americano, ao mesmo tempo que dará prazer aos eleitores americanos de origens estrangeiras, tais como polonesa, tcheca e húngara.
O diretor francês foi ouvido usando a palavra "merde" quando o imperador americano disse que, desta vez, só será permitido o ingresso de três países novos. O protesto do francês foi ignorado -mas ele, de qualquer maneira, já havia perdido uma eleição em seu país. Seja como for, a confederação do Atlântico Norte, formada pelos Estados Unidos-Canadá mais a Europa Ocidental, pode agora ser chamada de Organização Báltica Danúbia do Atlântico Norte, à qual, sem dúvida, o mar Negro será acrescentado dentro em breve.
Vejo que alguns de vocês estão se agitando nas cadeiras, impacientes. Quer dizer que os Estados Unidos é um império? Os assessores do imperador se divertem com essa idéia. Por acaso não somos uma democracia perfeita, amante da liberdade, ansiosa por exibir nossa economia totalmente moderna à velha Europa como modelo do que é possível em matéria de se gerar dinheiro para poucos, eliminando sindicatos e detalhes decadentes desnecessários tais como saúde e educação pública?
Em Denver, um lanceiro francês -sempre aqueles irritantes franceses!- indagou até que ponto são confiáveis as cifras relativas a nosso desemprego, quando se considera que um décimo da força de trabalho masculina não é contabilizada por encontrar-se presa ou cumprindo condicional. O primeiro-ministro canadense, ainda mais inoportuno do que o francês, foi ouvido comentando com seu colega belga (diante de um microfone) que, se os líderes de qualquer outro país aceitassem dinheiro de empresas de maneira tão aberta quanto fazem os líderes americanos, "estaríamos todos na cadeia". Evidentemente, os nativos estão inquietos. Mas nós ainda mandamos na Feira das Vaidades.
Menciono tudo isto não com o intuito de ser cruel. Antes, eu gostaria de observar que aqueles que convivem por muito tempo com contradições não questionadas tendem a não conseguir enfrentar a realidade quando ela, um belo dia, cai sobre suas cabeças.
Já sobrevivi a quase três quartos deste século. Me alistei no Exército dos Estados Unidos aos 17 anos; fui ao Pacífico; não fiz nada de útil -eu simplesmente estive lá, como dizia Nixon, QUANDO AS BOMBAS ESTAVAM CAINDO. Na realidade, porém, as bombas não estavam caindo sobre nenhum de nós dois: ele era oficial da Marinha que ganhava uma fortuna jogando pôquer, enquanto eu era um primeiro imediato do Exército e estava escrevendo um livro.
Agora, de repente, é 1997 e estamos "comemorando" o 50º aniversário da doutrina Truman e do plano Marshall. Também, o que é mais ameaçador, 26 de julho foi o 50º aniversário da Lei de Segurança Nacional, que, sem nenhuma discussão em nível nacional, mas com o apoio dos dois partidos no Congresso, na surdina, substituiu a velha república americana por um Estado de segurança nacional que é uma empresa-império global, fato que explica...
Mas primeiro vamos entrar na máquina do tempo.
São os idos de março de 1945. Alemanha e Japão se renderam, e cerca de 13 milhões de americanos estão a caminho de casa para desfrutar -bem, estar vivo sempre foi o que se podia desfrutar, em última análise.
"Casa" revela ser uma espécie de parque de diversões onde pipocam fogos de artifício, a banda toca "Don't Sit Under the Apple Tree", e uma mansão de diversões infinitamente sedutora nos abre suas portas. Nos divertimos em salas de espelhos onde todo mundo se vê ridiculamente distorcido, desfilamos pelos diversos túneis do amor e damos a volta de assustadoras salas de terror, onde esqueletos, teias de aranha e morcegos roçam nossa pele até que, adequadamente assustados e emocionados, estamos prontos para encontrar a saída e retornar à vida normal. Mas, para a consternação de alguns, nunca nos deixaram sair inteiramente da mansão das diversões. Ela se tornara parte de nosso mundo, assim como o eram os gnomos malignos sentados debaixo daquela macieira.
Oficialmente, os Estados Unidos estavam em paz; boa parte da Europa e a maior parte do Japão estavam em ruínas, muitas vezes literalmente e com toda certeza economicamente. Apenas nós conservávamos todas nossas cidades e uma espécie de economia em alta -"espécie de" porque ela dependia da produção para a guerra, e, a julgar pelo que nos diziam, não havia guerra se preparando em nenhum lugar. Mas as artes puderam florescer brevemente.
"The Glass Menagerie" (peça do dramaturgo Tennessee Williams) foi encenada, a "Appalachian Spring" de Aaron Copland (compositor americano) foi apresentada. Um filme chamado "The Lost Weekend" ("Farrapo Humano", filme de Billy Wilder, de 1945) -que não chegava ser um título mau para designar tudo pelo qual passáramos- ganhou um Oscar, e o ainda não-exilado Richard Wright lançou um romance muito admirado, "Black Boy", enquanto o livro "Memoirs of Hecate Country", de Edmund Wilson, era proibido em partes do país por conter obscenidade.
Curiosamente, cada cidade do país tinha pelo menos 3 ou 4 jornais diários naquela época, enquanto Nova York, como era de se esperar daquela que era a cidade mundial, tinha 17. Mas uma novidade, a televisão, começava a dar as caras em um lar após outro, com seu olhar frio e cinzento projetando, implacavelmente, uma visão parque de diversões do mundo.
Aqueles que acompanhavam a mídia -uma palavra feia e que acabava de ser cunhada- começaram a observar que, enquanto assistíamos até mesmo a Milton Berle, ficávamos entrando e saindo da sala dos horrores. Esqueletos subliminares apareciam repentinamente na tela da TV; nosso aliado na guerra recente, "tio Joe Stálin", como o presidente acidental Harry S. Truman o chamava, criava chifres e presas que gotejavam sangue. Na Terra, éramos a única grande potência não devastada e possuidora de armas atômicas; no entanto, de alguma maneira, corríamos riscos terríveis. Como? Por quê?
O problema parecia ser a Alemanha, que, em 11 de fevereiro de 1945, na reunião de cúpula de Yalta, havia sido dividida em quatro zonas: americana, soviética, britânica e francesa. Como os russos haviam se encarregado da maior parte dos combates e sofrido as maiores baixas, concordou-se que teriam direito às primeiras reparações pagas pela Alemanha -coisa da ordem de US$ 20 bilhões.
Começa a Guerra Fria
Num encontro posterior em Potsdam, o novo presidente Truman, ao lado de Stálin e Churchill, reconfirmou o que havia sido decidido em Yalta e optou pela unificação da Alemanha sob a égide das quatro potências vitoriosas. Mas alguma coisa acontecera entre a euforia de Yalta e a cautela arisca de Potsdam. Enquanto a reunião se desenrolava, a bomba atômica foi testada, com sucesso, num deserto do Novo México. Agora já estávamos em condições de incinerar o Japão -ou os soviéticos, se fosse o caso-, de modo que já não precisávamos da ajuda russa para derrotar os japoneses.
Começamos a descumprir nossos acordos com Stálin, especialmente no tocante às reparações alemãs. Também descartamos, sem alarde, a idéia acordada em Yalta de uma Alemanha unida sob o controle das quatro potências. Nosso objetivo passou a ser unir as três zonas ocidentais da Alemanha e integrá-las em nossa Europa Ocidental e, no processo, restaurar a economia alemã -logo, haveria menos reparações. A seguir, a partir de maio de 1946, começamos a rearmar a Alemanha. Stálin ficou louco com essa traição. Assim começou a Guerra Fria.
Em casa, a mídia começava a preparar a minoria atenta para a grande decepção. De repente nos vimos confrontados com os maiores impostos de renda de pessoa física na história do país, para pagar por mais e mais armas, entre elas a assassina bomba de hidrogênio -tudo isso porque os russos estavam chegando.
Ninguém sabia muito bem por que estavam chegando, nem com o quê. Por acaso ainda não estavam ocupados enterrando seus 20 milhões de mortos?
As explicações oficiais de tudo isso faziam pouco sentido, mas, como observou alegremente o secretário de Estado de Truman, Dean Acheson, "nós, no Departamento de Estado, discutíamos quanto tempo o mítico 'cidadão americano médio' investia por dia em ouvir, ler e discutir o mundo externo a seu próprio país... Nos pareceu que dez minutos por dia seria uma média alta". Então para que entediar o povo? Um governo "bipartidário" secreto é o melhor para uma sociedade que, afinal, é -ou deveria ser- composta de trabalhadores dóceis, consumidores entusiastas, soldados obedientes que acreditam em praticamente qualquer coisa por pelo menos dez minutos.

Continua à pág. 5-5

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