São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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A globalização dos significados

PIERRE LÉVY
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para se compreender a mutação da civilização contemporânea é necessário refletir sobre a primeira grande transformação na ecologia das mídias: a passagem das culturas orais para as culturas da escrita. A emergência do ciberespaço terá provavelmente -e hoje já tem, aliás- sobre a pragmática das comunicações um efeito tão radical quanto, na sua época, a invenção da escrita.
Nas sociedades orais, as mensagens linguísticas eram sempre recebidas no tempo e lugar em que eram emitidas. Emissores e receptores partilhavam uma situação idêntica e, em geral, um universo análogo de significado. Os atores da comunicação estavam embebidos no mesmo banho semântico, no mesmo contexto, no mesmo fluxo vivo de interação.
A escrita abriu um espaço de comunicação desconhecido às sociedades orais, no qual se tornava possível tomar conhecimento de mensagens produzidas por pessoas situadas a milhares de quilômetros, ou mortas havia séculos, ou então separadas por enormes distâncias culturais ou sociais. A partir deste instante, os atores da comunicação não partilhavam mais a mesma situação, não estavam mais em interação direta.
Subsistindo fora de suas condições de emissão e de recepção, as mensagens permanecem "fora de contexto". Este "fora de contexto" -que, de início, salienta apenas a ecologia das mídias e a pragmática da comunicação- foi legitimado, sublimado e interiorizado pela cultura. Ele será, no futuro, o núcleo de uma certa racionalidade e levará, finalmente, à noção de universalidade.
É difícil compreender uma mensagem quando ela se acha separada de seu contexto vivo de produção. Por isso se inventaram, da parte da recepção, as artes da interpretação, da tradução e toda uma tecnologia linguística (gramáticas, dicionários...). Da parte da emissão, o esforço recaiu na composição de mensagens que fossem capazes de circular por toda parte, independentemente de suas condições de produção, que contivessem em si mesmas, na medida do possível, sua chave de interpretação ou sua "razão".
A semelhante esforço prático corresponde a idéia do universal. Em princípio, não é preciso recorrer a um testemunho vivo, a uma autoridade exterior, a costumes ou a elementos de um ambiente cultural particular para compreender e admitir as proposições enunciadas nos "Elementos" de Euclides. Este texto encerra em si mesmo as definições e os axiomas dos quais decorrem necessariamente os teoremas. Os "Elementos" são um dos melhores exemplos de mensagem auto-suficiente, auto-explicativa, englobando as suas próprias razões, que não teria pertinência numa sociedade oral.
A filosofia e a ciência clássicas, cada uma a seu modo, visam à universalidade. Segundo a minha hipótese, isso ocorre porque elas não podem ser separadas do dispositivo de comunicação instaurado pela escrita. As religiões "universais" (e não falo somente dos monoteísmos: pensemos no budismo) são todas fundadas sobre textos. Se quiser converter-me ao islamismo, posso fazê-lo em Paris, em Nova York ou em Meca.
Mas, se quiser praticar a religião dos bororos (supondo que tal projeto tenha um sentido), não me resta senão viver com os bororos. Os ritos, mitos, crenças e modos de vida dos bororos não são "universais", mas contextuais e locais. Eles não repousam, de maneira alguma, numa relação com textos escritos. Essa constatação não implica, evidentemente, nenhum juízo etnocêntrico de valor: o mito bororo pertence ao patrimônio da humanidade e pode emocionar, virtualmente, qualquer ser pensante. Além disso, as religiões particularistas também possuem seus textos: a escrita não determina automaticamente o universal, ela o condiciona ("não há universal sem escrita").
Como os textos científicos ou filosóficos que se dizem depositários de sua própria razão, portadores de seus próprios fundamentos e abrigo de suas condições de interpretação, os grandes textos das religiões universalistas abarcam, pela composição, a fonte de sua autoridade. De fato, a origem da verdade religiosa é a revelação. Ora, o Torá, os Evangelhos e o Alcorão são a própria revelação ou o relato genuíno da revelação. O discurso não se situa mais na linha de uma tradição que retira sua autoridade do passado, dos ancestrais ou da evidência partilhada por uma cultura. O texto (a revelação) funda por si só a verdade, e foge, assim, a todo contexto condicionante. Graças ao regime de verdade que se apóia sobre um texto-revelação, as religiões do livro libertam-se da dependência de um meio particular e tornam-se universais.
No universal fundado pela escrita, o que deve ser mantido intocado pelas interpretações, traduções, difusões e conservações é o sentido. O significado da mensagem deve ser o mesmo lá e cá, hoje e sempre. Esse universal é indissociável de uma pretensão de fechamento semântico. Seu esforço de totalização luta contra a pluralidade aberta de contextos atravessados pelas mensagens, contra a diversidade das comunidades que os fazem circular. Da invenção da escrita seguem-se as exigências muito especiais da descontextualização dos discursos. Tal fato, o domínio globalizante do significado, o anseio pelo "todo", a tentativa de instaurar em cada lugar o mesmo sentido (ou, no âmbito da ciência, a mesma exatidão), está, para nós, associado ao universal.
O correio, o telefone, a imprensa, o mercado editorial, o rádio e as inúmeras cadeias de televisão formam agora a franja imperfeita, os apêndices parciais de um espaço de interconexão aberto, animado de comunicações transversais, caótico, fervoroso, fractal, movido por processos magmáticos de inteligência coletiva. Sem dúvida, nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio de informações, mas a densidade dos laços e a rapidez da circulação é tamanha que os atores da comunicação não têm dificuldade de partilhar o mesmo contexto, ainda que esta situação seja um pouco escorregadia e muitas vezes complicada.
A interconexão generalizada, utopia mínima e motor primeiro do crescimento da Internet, emerge como uma nova forma do Universal. Mas cuidado! O processo em curso de interconexão mundial realiza uma forma do Universal -diversa, porém, da forma estática da escritura. Aqui, o Universal não se articula mais sobre o fechamento semântico requerido pela descontextualização, antes pelo contrário. Esse Universal não totaliza mais pelo sentido, mas reúne pelo contato, pela interação geral.

Tradução de José Marcos Macedo.

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