São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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As diversões imperiais

GORE VIDAL

Longe do socialismo doentio da Europa, não temos serviço de saúde nem ensino público adequado, mas não faltam horas de trabalho malpagas

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O Estado de Segurança Nacional, a aliança da Otan, a Guerra Fria que durou 40 anos, todos foram criados sem o consentimento da população americana, que nem sequer chegou a ser consultada. Houve, é claro, eleições durante esse período crucial, mas Truman-Dewey, Eisenhower-Stevenson, Kennedy-Nixon tinham a mesma opinião no tocante à conveniência de, primeiro, inventar-se um inimigo de muitos tentáculos, o comunismo, estrela da câmara dos horrores; e, depois, para combater tanto mal, instalar um Estado guerreiro permanente em casa, com juramentos de lealdade, alistamento militar obrigatório em época de "paz" e uma polícia secreta para vigiar os "traidores" nativos, como ficaram sendo conhecidos os poucos inimigos do Estado de Segurança Nacional.
Seguiram-se 40 anos de guerras insensatas que geraram uma dívida de US$ 5 trilhões, que beneficiou enormemente a indústria aeroespacial e empresas como a General Electronic, cujo defensor de longa data na TV foi Ronald Reagan, que, depois, acabou passando sua aposentadoria na Casa Branca.
Estados Unidos da Amnésia
Por que relembrar tudo isso agora? Será que não nos saímos maravilhosamente bem enquanto os Estados Unidos da Amnésia? Nossa economia é alvo da inveja do mundo, proclamou o presidente em Denver. Inflação zero. Emprego para todos, menos os 2% da população que estão na prisão e os 5% que já desistiram de procurar trabalho e, portanto, já deixaram de ser contabilizados, levando nosso índice real de desemprego para perto da deprimente média européia de 11%. E tudo isso conseguido sem jamais sucumbirmos ao socialismo doentio da Europa.
Não temos serviço de saúde nem ensino público adequado nem tampouco, na verdade, praticamente nada para os moradores da casa das diversões. Mas não faltam horas de trabalho malpagas para maridos e mulheres, sem atendimento para as crianças enquanto os pais estão fora de casa. Felizmente, o Congresso já está preparando uma legislação para que as prisões para adultos possam abrigar delinquentes de 14 anos. Eles, pelo menos, serão cuidados, enquanto, economicamente, é apenas questão de tempo até que o próprio globo inteiro seja sujeito a nossas regras econômicas.
Os banqueiros europeus com certeza nos invejam por nossos sindicatos impotentes (apenas 14% dos felizardos habitantes do parque de diversões têm o privilégio de serem filiados a um sindicato) e por nossas indústrias -enxutas, desalmadas, com seus quadros de funcionários reduzidos ao mínimo e os demitidos sem terem para onde ir, a não ser para o inferno, onde serão fritos e queimados.
Hoje, damos ordens aos outros países. Nós lhes dizemos com quem podem comerciar e a qual de nossos tribunais devem comparecer para serem indiciados, caso nos desobedeçam. Enquanto isso, agentes do FBI percorrem o mundo à procura de viciados e traficantes de drogas, enquanto a inconstitucional CIA (que não submete suas contas ao Congresso, como exige a Constituição) caça "terroristas", agora que seus ex-colegas e ocasionais contratantes na KGB russa abandonaram suas atividades.
Chegamos ao que Tennessee Williams certa vez qualificou de "uma lua de pausa". Quando lhe perguntei o significado dessa frase, conforme dita por uma atriz em uma de suas peças, ele me explicou altivamente: "É a tradução grega de menopausa". Eu disse a ele que a palavra "moon" (lua, em inglês) não vem de "menses" ("mês" em latim, não em grego). "Então como se diz 'lua' em latim?", ele perguntou, desconfiado. Quando eu lhe disse que é "luna" e lhe fiz ver o quanto poderia divertir-se com a palavra "lunático", ele suspirou e cortou. Mas na época da conferência de Madri sobre a ampliação da Otan, uma lua de pausa parecia ser uma frase esdrúxula bem apropriada para designar a mudança de fase de vida pela qual nosso império está passando, sem inimigos e sem função discernível.
Enquanto estávamos mais ocupados em nosso parque de diversões, ninguém jamais nos contou do que se tratava o Tratado da Aliança do Atlântico Norte. Em 17 de março de 1948 o Tratado de Bruxelas pediu uma aliança militar do Reino Unido, França e Benelux, aos quais se somariam os EUA e o Canadá no dia 23 de março. A força motriz por trás da Otan foi os Estados Unidos, cuja principal política externa, desde o governo de George Washington, consistira em evitar o que Alexander Hamilton qualificava de "alianças com amarras". Agora, como os russos estariam vindo, substituímos a velha república pelo recém-nascido Estado de Segurança Nacional e nos estabelecemos como a maior potência européia a oeste do Elba.
Estávamos totalmente decididos a promover a divisão permanente da Alemanha entre nossa zona ocidental (somada às zonas francesa e britânica) e a zona soviética, ao leste. Com serenidade total, rompemos todos os tratados que havíamos selado com nosso ex-aliado, agora transformado em horrendo inimigo comunista. Para quem estiver interessado nos detalhes, "Drawing the Line (The American Decision to Divide Germany 1944-49)", de Carolyn Eisenberg, oferece a história abrangente e confiável de um império reunindo suas forças -às vezes cegamente, às vezes de maneira brilhante-, transformando primeiro seus aliados e depois seus adversários, como Alemanha, Itália e Japão, em Estados clientes, permanentemente sujeitos a nosso "diktat" militar e econômico.
Embora os soviéticos ainda quisessem respeitar nossos acordos iniciais em Yalta e até mesmo Potsdam, decidimos, de maneira unilateral, restaurar a economia alemã para poder incluir uma Alemanha rearmada na Europa ocidental, desse modo isolando o Soviete, país que não se recuperara da Segunda Guerra Mundial e não possuía armas nucleares.
Foi Acheson, mais uma vez, quem elegantemente explicou todas as mentiras que foi obrigado a contar ao Congresso e ao americano médio, aquele cuja atenção se limita a dez minutos: "Embora tenhamos deixado nossas posições mais claras do que a verdade, não diferimos da maioria dos educadores e dificilmente poderíamos ter feito outra coisa... A precisão de detalhes deve dar lugar à simplicidade da afirmação; as nuanças, à franqueza quase brutal necessária para se deixar bem claro o que se quer dizer". Foi esse o tratamento dado a duas gerações de americanos por seus senhores, até que, no fim, diante da palavra "comunismo", tudo que se tem é um reflexo pavloviano orgástico, ao mesmo tempo em que o cérebro se desliga.
Com relação ao "inimigo", o embaixador Walter Bedell Smith -um ex-general com pontos de vista fortes e simplistas- escreveu a seu antigo chefe, general Eisenhower, de Moscou em dezembro de 1947, a propósito de uma conferência para regularizar as questões européias: "A dificuldade com que nos confrontamos é que, apesar de nossa posição anunciada, não queremos nem pretendemos realmente aceitar a unificação alemã sob quaisquer termos com que os russos poderiam concordar, mesmo que eles parecessem estar dispostos a aceitar a maioria de nossas exigências".
Veio daí a frustração de Stálin que levou ao famoso bloqueio do setor aliado de Berlim, superado pela bem-sucedida ponte aérea montada pelo general Lucius Clay. Como escreve Eisenberg, "com o encetamento do bloqueio de Berlim, o presidente Truman articulou uma história simples que destacava os russos desprezando os acordos selados durante a guerra, em seu avanço implacável para dominar a ex-capital alemã. O presidente não explicou que os Estados Unidos haviam abandonado Yalta e Potsdam, que estavam promovendo a formação de um Estado alemão ocidental, apesar das apreensões de muitos europeus, e que os soviéticos haviam lançado o bloqueio para impedir a partilha".
O presidente inverteu a verdade, como um espelho que distorce imagens. Mas ele nunca chegou a ficar tão atento para a situação alemã quanto estava para a eleição vindoura (novembro de 1948), uma eleição de interesse pessoal enorme para ele, mas, dentro do esquema mais amplo, para ninguém mais.
Ele percebia, sim, que os poucos americanos capazes de identificar George Washington poderiam tecer objeções a nossa aliança Otan, e por isso seu secretário de Estado, Acheson, recebeu ordens para esperar até fevereiro de 1949, depois da eleição, para apresentar ao Congresso nossa mudança de status -de república do hemisfério ocidental para Estado europeu imperial, equilibrado simetricamente por nosso império asiático, centrado no Japão ocupado, e, quando chegou a hora certa, pela aliança Asean (Associação das Nações do Sudeste Asiático).
A questão do império americano nunca chegou a ser discutida adequadamente, já que o pouco debate que existia era centrado no suposto desejo da União Soviética de conquistar o mundo todo, assim como Hitler e os nazistas estavam tentando fazer quando foram impedidos, em 1945, pela União Soviética com a ajuda (que Stálin considerava ter chegado com atraso suspeito) dos Estados Unidos.
Em 12 de março de 1947, Truman dirigiu-se ao Congresso para proclamar aquela que viria a ser conhecida como a doutrina Truman, na qual escolheu como alvo inimigo nosso aliado de dois anos antes. O assunto à mão era uma guerra civil na Grécia, supostamente dirigida pelos soviéticos. Era algo que não podíamos tolerar, já que, de repente, "a política dos Estados Unidos (consiste em) apoiar os povos livres que resistem às tentativas de subjugá-los, feitas por minorias armadas ou por pressões externas". Assim, Truman transformou o mundo inteiro em assunto dos Estados Unidos. Embora os insurretos gregos estivessem recebendo alguma ajuda da Bulgária e Iugoslávia, a União Soviética não se envolveu. Ela ainda esperava que os britânicos, aos quais a Grécia antes dizia respeito, iriam manter a ordem. Mas, como o Reino Unido não tinha nem recursos nem disposição para tanto, ela convocou a ajuda dos EUA.
Por trás das portas fechadas de sempre, Acheson agitava o Congresso com intensidade shakespeariana: segundo ele, pressões russas de alguma espécie haviam "levado os Bálcãs ao ponto em que um avanço soviético altamente possível teria a chance de abrir três continentes à penetração soviética". Os senadores se assustaram, empalideceram e começaram a imaginar como poderiam conseguir mais contratos de "defesa" para seus respectivos Estados.
Apenas o ex-vice presidente Henry Wallace, dos políticos importantes, ousou responder à versão "mais clara do que a verdade" da história apresentada por Truman: "Ontem, 12 de março de 1947, marcou uma virada na história americana, pois não é uma crise grega que enfrentamos e sim uma crise americana. Ontem o presidente Truman... propôs, com efeito, que os EUA policiem todas as fronteiras russas. Não existe regime reacionário demais para nós, desde que se encontre no caminho expansionista russo. Não existe país distante demais para servir de palco de uma disputa que poderá se ampliar até transformar-se numa guerra mundial".
Nove dias depois de Truman declarar guerra ao comunismo, ele implantou um programa federal de juramento de fidelidade à nação. Todos os funcionários do governo passaram a ter que jurar fidelidade à nova ordem. Wallace reagiu outra vez: "A ordem executiva do presidente cria uma lista mestre de servidores públicos. Desde o zelador da agência de correios da esquina até os membros do gabinete, todos serão selecionados, testados, vigiados e avaliados".
Truman estava ciente de que muitos enxergavam Wallace como o verdadeiro herdeiro do New Deal de Roosevelt, e isso o inquietava; também era provável que Wallace participasse como candidato da corrida presidencial de 1948. Truman, então, deixou a verdade definitivamente para trás. "A tentativa feita por Lênin, Trótski, Stálin e companhia de enganar o mundo e a Associação dos Malucos Excêntricos Americanos, representada por Jos. Davies, Henry Wallace, Claude Pepper e os atores e artistas da imoral Greenwich Village, é exatamente como os chamados Estados socialistas de Hitler e Mussolini." Dá-lhe, Harry!
Na esteira do surgimento de Truman, como um cuco de um relógio saindo de dentro do armário antiquado da república americana original, um novo Estado americano estava vindo à luz para salvar a nação e o próprio planeta do comunismo.
A natureza desse Estado militarizado foi, desde o início, algo situado fora da esfera da discussão racional. De modo característico, Truman e Acheson fizeram questão de que as sessões do Comitê do Senado para as Relações Exteriores se dessem a portas fechadas. Esses assuntos eram importantes demais para serem compartilhados com pessoas cujos parcos dez minutos de atenção estavam sendo cada vez mais preenchidos pela televisão.
O líder republicano do comitê, Arthur H. Vandenberg, o grande tolo de Grand Rapids, Michigan, ficou emocionado por desfrutar da confiança dos criadores do novo império, mas chegou a sugerir, em termos práticos, que, se não se assustasse o povo americano até a raiz dos cabelos, o Congresso encontraria dificuldades em levantar os fundos necessários para financiar a estocagem de armas e equipamentos militares naquilo que, dentro do cada vez mais isolado parque de diversões, ainda se acreditava ser tempo de paz.
A voz de um fantasma
A reação da mídia foi uníssona. Henry Luce, o publisher da Time Inc., a expressou na voz mais alta: "Deus fundou os Estados Unidos da América para servirem de farol mundial da liberdade". As vozes discordantes, como as de Wallace, foram rotuladas de comunistas e deixaram de ter uma participação significativa na vida pública, ou mesmo, em 1950, na discussão. Como a voz de um fantasma, uma voz ancestral, ele se pronunciou em 21 de maio de 1947: "Hoje, por temor cego do comunismo, estamos virando a cara às Nações Unidas. Estamos nos aproximando de um século de medo". Até agora ele comprovadamente já acertou metade de sua previsão.
Em 26 de julho de 1947 o Congresso aprovou a Lei de Segurança Nacional, que criou o Conselho de Segurança Nacional, ainda firme em sua função, e a Agência Central de Inteligência (CIA), que aparentemente está caindo de um abismo em consequência de décadas de falta de inteligência, sem falar em todos aqueles traidores alegres, para os quais o clube de campo de Langley, Virgínia serviu de disfarce e esconderijo impenetrável.
Anos mais tarde, um Truman mais triste, se não mais sábio, disse a seu biógrafo, Merle Miller, que a CIA se transformara numa confusão perigosa e que não deveria ter sido montada como foi. Mas em 1947 o principal papel da CIA na Europa não era combater as atividades soviéticas e sim controlar a política dos membros da Otan. Sindicatos e publicações franceses e italianos foram subsidiados, e muito dinheiro secreto foi canalizado para a Itália para assegurar a vitória do Partido Cristão Democrata nas eleições de abril de 1948.
Acheson, em "Present at the Creation", um livro de memórias que compensa em elegância o que lhe falta em franqueza, alude delicadamente ao Documento 68 do Conselho de Segurança Nacional (o projeto de nossa guerra contra o comunismo, redigido em 1950). Mas em 1969, quando escrevia o livro, ele observa, com tristeza, que esse memorando ainda era mantido em sigilo. Ele só seria aberto para leitura geral em 1975.
Há sete pontos. Primeiro, jamais negociar com a União Soviética. Não surpreende que Stálin, rejeitado e sempre melindroso, a toda hora reagisse com brutalidade na Europa central. Em segundo, desenvolver a bomba de hidrogênio para que, quando os russos conseguissem a bomba atômica, ainda estivéssemos à frente deles. Terceiro, fortalecer e aumentar rapidamente as forças convencionais. Quarto, para pagar por tudo isso, impor um imposto de renda à pessoa física pesadíssimo, com alíquotas de até 90%.

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