São Paulo, domingo, 7 de dezembro de 1997
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As diversões imperiais

GORE VIDAL

Nenhuma das guerras travadas pelos EUA desde 1950 foi declarada pelos representantes do povo reunidos no Congresso

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O quinto ponto consistia em mobilizar todo mundo na guerra ao comunismo interno, por meio de propaganda, juramentos de fidelidade e redes de espionagem, como o FBI, cujo agente secreto Ronald Reagan, presidente da Associação dos Atores de Cinema e Televisão (Screen Actor's Guild), chegou ao poder às custas de dedurar atores melhores do que ele. O sexto, montar um sistema forte de alianças dirigido pelos EUA-Otan. O sétimo, fazer da população russa, por meio de propaganda e ações da CIA, nossa aliada contra seu próprio governo, desse modo legitimando, com essa tarefa extremamente mal definida, nossos muitos agentes secretos que não prestavam contas a ninguém.
Assim, depois de passarmos cinco anos no parque de diversões, emergimos parcialmente em janeiro de 1950 para nos encontrarmos num país de tipo diferente. E, espantosamente, estávamos em guerra novamente: desta vez na Coréia. Mas, como Truman e Acheson tinham medo de pedir uma declaração de guerra ao Congresso, essa guerra foi qualificada como uma ação policial das Nações Unidas e perdida com baixas consideráveis.
Acheson chegou a redigir um memorando garantindo a Truman que 87 aventuras militares presidenciais já haviam sido empreendidas no passado sem uma declaração de guerra feita pelo Congresso, como mandava a velha Constituição. De 1950 para cá os EUA já travaram cerca de uma centena de guerras, abertas ou veladas. Nenhuma delas foi declarada pelos representantes nominais do Povo Americano Reunido em Congresso; eles mansamente entregaram ao Executivo seu grande poder principal, o de travar guerras. Foi o fim daquela Constituição.
O porta-aviões Reino Unido
Como levaremos pelo menos uma década para reinventar a China como novo império do mal, a Lua se encontra em estado de pausa em todo o velho parque de diversões. Estamos ingressando numa fase com a qual aqueles "presentes à criação" do império nem sequer sonhavam. Embora muitos ainda façam objeção, reflexivamente, à palavra "império", o fato é que temos bases militares em todos os continentes, além de outras dez a bordo do porta-aviões chamado Reino Unido.
Nos últimos 50 anos apoiamos tiranos demais, derrubamos governos democráticos demais, desperdiçamos dinheiro nosso demais nas guerras civis de outros países para podermos fazer de conta que estamos apenas dando uma mãozinha àquele pessoal infeliz espalhado pelo mundo que ama a liberdade e a democracia tanto quanto nós a amamos. Em 1991, quando os russos nos apunhalaram pelas costas, fechando seu império, ficamos com muitas idéias erradas a nosso próprio respeito e, o que é pior, a respeito do resto do mundo.
O Congresso não entregou ao Executivo apenas o primeiro de seus grandes poderes -também o segundo, o poder do dinheiro, parece estar sendo negociado, à medida que o Congresso despeja sobre o Pentágono mais dinheiro do que até mesmo esse buraco negro jamais pediu, obrigando o Executivo a passar muitas horas quentes na cozinha onde os livros de contabilidade são cozidos perpetuamente em tinta vermelha viva.
Quanto à nossa Suprema Corte, que lembra uma mesa espírita, seria agradável se seus integrantes tirassem algum tempo das horas que passam em contato mediúnico com os fundadores há muito tempo mortos da nação, cuja intenção original os deixa tão perplexos, e examinassem, de fato, a obra dos fundadores: a própria Constituição e a Carta de Direitos.
Será que alguém se manifestou durante o meio século que nos mergulhou numa dívida de US$ 5 trilhões, ao mesmo tempo em que reduziu a renda média familiar em 7% quando... Não. Me desculpe. É maçante demais.
Ou, como escreve Edward S. Herman, "Paul Krugman admite, em 'Age of Diminished Expectations', que a deterioração da distribuição de renda foi 'o fato central da vida econômica nos EUA na década de 80', mas que, enquanto questão a ser discutida, ela 'basicamente já esgotou a paciência do público americano'±" -seus dez minutos de atenção- "e que 'parece ser pouco provável que qualquer mudança de política que se encontre sob discussão atualmente vá reduzir essa brecha significativamente'±".
Foi o crítico literário e social da "The New Yorker" Edmund Wilson quem primeiro soou o alarme. Em 1963 ele publicou "The Cold War and the Income Tax". Estupidamente, admite, ele deixou de pagar imposto de renda entre 1946 e 1955. Como já observei, um dos grandes acontecimentos de nosso primeiro ano no parque de diversões foi a publicação, em 1946, do romance "Memoirs of Hecate Country", de Wilson.
A renda do autor, que nunca havia sido grande, dobrou. Depois um sistema de justiça permanentemente atento à indecência sexual proibiu seu livro por ordem judicial. Ele se viu duro, com uma vida conjugal confusa e cara. Wilson descreve como foi perseguido por agentes da Receita; ele também escava até o pano de fundo do imposto de renda federal, que, como sabemos, data de 1913. Observa que, nos anos 60, estávamos pagando mais impostos do que pagávamos durante a Segunda Guerra.
Como o Memorando 68 do Conselho de Segurança Nacional iria permanecer em segredo por 12 anos ainda, ele não tinha meios de saber que o punitivo imposto de renda tinha que ser pago pela população americana para financiar a montagem de forças tanto nucleares quanto convencionais para nos "proteger" de um país do Segundo Mundo que, até então, não havia representado uma ameaça a ninguém exceto seus vizinhos fracos de fronteira.
Na resenha que fiz da polêmica de Wilson (3/11/1963), escrevi: "No âmbito dos serviços públicos, estamos atrasados em relação a todas as nações industrializadas do Ocidente, preferindo que o dinheiro público seja direcionado não ao povo, mas às grandes empresas. O resultado é uma sociedade singular, na qual temos o livre empreendimento para os pobres e o socialismo para os ricos".
Dívidas e sangue
Deve ser observado -mas raramente o é- que a Depressão não pôs fim ao New Deal de 1933-40. Na verdade, o New Deal voltou à tona, pior do que nunca, em 1939 e 1940. Mais tarde, quando Roosevelt gastou cerca de US$ 20 bilhões com a defesa (1941), a Depressão já havia terminado e lord Keynes tinha virado herói.
Essa injeção relativamente pequena de dinheiro público no sistema reduziu o desemprego a 8% e, como seria de se esperar, impressionou os administradores do país no pós-guerra: se você quiser evitar uma depressão, gaste dinheiro com guerras. Ninguém disse a eles que o mesmo dinheiro gasto na infra-estrutura do país nos teria poupado dívidas, tristeza e sangue.
O que hoje nos parece ser a abordagem um tanto quanto "aérea" de Wilson ao pagamento de impostos é razoável, no contexto da época em que viveu. Em 1939 só quatro milhões de pessoas pagaram imposto de renda -menos de 10% da força de trabalho. Segundo Richard Polenberg, "no verão de 1943, quase todos os americanos pagavam impostos sobre seus ganhos semanais, e a maioria não atrasava seus pagamentos... Assim foi erigido o fundamento da estrutura tributária moderna". Depois disso algum gênio anônimo bolou o imposto retido na fonte, e as pessoas se viram sem saída. Wilson não sabia nada disso. Mas ele havia decifrado o elo causal entre imposto de renda e Guerra Fria.
"A verdade é que a população dos Estados Unidos, no presente momento, é dominada e movida por dois tipos de medo oficialmente propagado: o medo da União Soviética e o medo do imposto de renda. Esses dois terrores foram ajustados de modo a complementar-se mutuamente e, assim, manter o cidadão de nossa sociedade livre sob a tensão de uma pressão dupla, da qual se vê incapaz de escapar -como o homem da velha história do Oeste americano que, sendo perseguido até um desfiladeiro por um búfalo, se vê confrontado por um urso pardo. Se não aceitarmos o imposto, o búfalo russo vai nos pisotear, e, se tentarmos desafiá-lo, o urso federal nos esmaga."
A nossa Cosa Nostra
Na época em que foi criada a Organização do Tratado do Atlântico Norte original, apenas De Gaulle entendeu o que estávamos fazendo; ele retirou a França de nossa Cosa Nostra e desenvolveu sua própria bomba atômica. Mas a França ainda estava muito ligada ao império.
O controle político era exercido no interior do império por meio da CIA e de outras forças secretas, não apenas empurrando o premiê trabalhista britânico longe demais, mas também impedindo a Itália de jamais chegar a ter um governo coeso, ao impedir a concretização do chamado "compromisso histórico" -um governo formado por democratas cristãos e comunistas. O Soviete não tardou a reprimir seus Estados clientes Tcheco-Eslováquia, Hungria e Alemanha Oriental, e um muro foi erguido em Berlim para frustrá-los. Entre 1950 e 1990 a Europa ficou perigosamente dividida e armada até os dentes. Mas, como os produtores americanos de armas nunca haviam estado mais ricos, tudo estava bem em seu mundo.
Em Yalta, Roosevelt queria fragmentar todos os impérios coloniais europeus, especialmente o francês. Sobre a Indochina, comentou: "A França a vem sugando há cem anos". Propôs que ela fosse administrada pela ONU por determinado período. Depois morreu. Diferentemente de Roosevelt, Truman não era filatelista. Se tivesse sido colecionador de selos, talvez soubesse onde ficam os diversos países do mundo e quem vive neles.
Mas, como todo bom americano, Truman sabia que odiava o comunismo. Ele também odiava o socialismo, que pode ou não ter sido a mesma coisa. Ninguém parecia ter muito certeza quanto a isso. No entanto, já na eleição americana de 1848, o socialismo -importado por cômicos imigrantes alemães que viviam com o nariz enfiado em livros- era um espectro ameaçador, capaz de atrapalhar uma sociedade capitalista nova e crua com sindicatos, serviços de saúde e outras obras do demônio que ainda enfrentavam resistência século e meio depois.
Em 1946, quando Ho Chi Minh pediu aos Estados Unidos que protegessem a Indochina, Truman disse algo como "nada disso. Você é algum tipo de comunista Fu Manchu -o pior". Em agosto de 1945 Truman disse a De Gaulle que os franceses podiam retornar à Indochina -não éramos mais antiimperialistas estilo Roosevelt.
Como Ho tinha sua república ao norte, os franceses instalaram Bao Dai no sul. Em 1º de fevereiro de 1950 o Departamento de Estado informou: "A escolha que confronta os EUA é entre apoiar os franceses na Indochina ou enfrentar a extensão do comunismo pelo restante da área continental do sudeste asiático e, possivelmente, ainda mais longe em direção oeste".
Assim nasceu a teoria do dominó num estábulo humilde do Departamento de Estado, sem pastores, nem mesmo uma estrela de napalm. No dia 8 de maio de 1950, Acheson recomendou a concessão de ajuda econômica e militar aos franceses no Vietnã. Em 1955 os EUA já pagavam 40% dos custos de guerra franceses.
Os Estados Unidos iriam combater no Vietnã por um quarto de século porque nossos líderes ignorantes e seus financistas astutos nunca se deram conta de que o jogo, na melhor das hipóteses, é xadrez, nunca dominó. Mas nada jamais se mantém igual. Durante os derradeiros dias da lua minguante, foi montada uma união econômica fortuita na Europa ocidental; depois, enquanto o Soviete repentinamente abria mão de seu império, as duas Alemanhas que tanto nos esforçamos para separar se reunificaram. De repente Washington se viu à toa, e a Lua parou lá no céu do império.
Nem Reagan nem Bush sabiam muito de história ou geografia. Apesar disso, as ordens continuaram saindo da Casa Branca. Mas eram cada vez menos ouvidas, porque todo mundo sabe que o Ser Oval tem um negativo de US$ 5 trilhões na conta e já não está em condições de oferecer presentes aos bons clientes ou travar guerras sem antes passar o chapéu entre os alemães e japoneses, como foi obrigado a fazer quando chegou a hora de patrocinar o show de luzes da CNN no Golfo Pérsico.
Pouco a pouco foi ficando claro, até mesmo para o frequentador mais distraído do parque, que não há mais necessidade de Otan porque não há inimigo. Poderíamos dizer que nunca houve realmente um inimigo na época da fundação da Otan, mas, com o passar dos anos, conseguimos criar um Soviete bastante perigoso, uma versão espelhada de nosso próprio parque de diversões. Embora ainda seja possível que os Estados Unidos declarem guerra a um bilhão de muçulmanos, em apoio a Israel, os europeus vão ficar de fora. Eles se recordam de 1529, quando os turcos assediaram Viena, não na condição de trabalhadores imigrantes, mas de conquistadores do mundo. Nunca mais!
Na esteira da cúpula da Otan em Madri, chegou a hora de os EUA se afastarem da Europa -graciosamente. Não resta dúvida de que os europeus acham que já está na hora de partirmos, como se pôde perceber pelas observações em tom de desdém que deixaram escapar em Denver, especialmente quando foram aconselhados a não se afastarem mais de um ou dois quarteirões de seus hotéis a pé, para não correrem o risco de ser assaltados, mutilados, assassinados. No entanto, por que persistimos em nos ater a um império? "Cherchez la monnaie", como dizem os franceses espertos. Desde 1941, quando Roosevelt nos tirou da Depressão, injetando dinheiro federal no rearmamento, a guerra ou a ameaça de guerra tem sido a principal força motriz de nossa sociedade.
Agora a guerra acabou. Ou: será que acabou? Será que podemos nos dar ao luxo de abandonar nossa guerra aconchegante, em lugar de encolher? Por que não expandimos nosso império fantasma na Europa, incluindo todo mundo na Otan? Não há razão para termos algum inimigo definido, se bem que a Rússia, quem sabe, se for atormentada o suficiente, possa ser persuadida a mais uma vez fazer o papel do Grande Satanás em nossa câmara de horrores, que já anda um tanto empoeirada.
Com uma Otan expandida, nossos fabricantes de armas -possivelmente até seus empregados- vão se dar muitíssimo bem. Nossas vendas de armas já subiram 23% no ano passado, chegando a US$ 11,3 bilhões em pedidos recebidos; enquanto isso, estão sendo levantadas as restrições às vendas à América Latina.

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