São Paulo, segunda-feira, 8 de dezembro de 1997
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O inferno é aqui mesmo?

MOACYR SCLIAR

Preso no trânsito, ele perdeu a paciência e pôs-se a gritar, esmurrando o volante:
- Diabo! Diabo!
Ouviu-se um estrondo, uma nuvem de fumaça invadiu o interior do carro e, quando ela se dispersou, lá estava, sentada no carro, a figura inconfundível: os pequenos chifres, os olhinhos malignos, o rabo. O diabo, em pessoa, sorridente:
- Chamaste-me? Aqui estou.
Apavorado, o motorista não sabia o que dizer. Queria voltar atrás, foi engano, senhor diabo, eu não chamei ninguém, eu estava apenas protestando contra o trânsito; mas, como se tivesse adivinhado o seu pensamento, o demônio apressou-se a acrescentar:
- E vim para ficar. Você sabe, ninguém invoca impunemente o nome do demônio. De modo que você pode me considerar seu eterno passageiro. Relaxe, fique tranquilo. Temos muito tempo para conversar.
O pobre homem não dizia nada. Olhava o tridente que o diabo tinha ao lado e se perguntava em que momento começaria a ser espetado com aquela coisa. Isso sem falar no fogo do inferno que decerto em pouco tempo estaria aceso ali. Tentou disfarçadamente abrir a porta; como suspeitava, estava trancada. Demônios sabem como usar a tecnologia moderna contra suas vítimas. Suspirou, pois, e preparou-se para o sofrimento.
O trânsito continuava parado, as horas passavam, e o diabo, que de início falara loquazmente sobre as delícias do castigo eterno, agora mostrava-se silencioso. Mais, mexia-se inquieto no banco de trás. E de repente não se conteve:
- Mas será que essa coisa não anda, meu Deus do céu?
Novo estrondo, e nova nuvem, dessa vez luminosa; o demônio tinha sumido e, em seu lugar, estava um ancião de esplêndidas barbas brancas.
- O diabo já deveria ter aprendido que não se invoca o meu santo nome em vão - disse.
- Mas você é Deus! exclamou o motorista, maravilhado.
- Pode me chamar assim - disse Deus. - Ah, e pode fazer um pedido, também. Você merece.
O homem não hesitou:
- Quero que você me tire agora deste congestionamento.
Ao que Deus abriu a porta e saltou. Antes de ascender aos céus, esclareceu:
- Desse trânsito, meu filho, nem Deus te tira. Acho melhor você chamar o demônio de novo.

O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em notícias do jornal.

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