São Paulo, segunda-feira, 8 de dezembro de 1997
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Os donos da bola

CARLOS FRANCISCO BANDEIRA LINS

Ao criticar a medida provisória 1.591 em meu artigo "As organizações sociais e o governo" (Folha, 13/11), sabia que era ela tão viciada e imperfeita que, se alguém se dispusesse a defendê-la, só o poderia fazer cedendo à regra de que, num debate, se escasseiam argumentos, há que desqualificar intelectualmente o adversário.
Vejo agora, diante do artigo de Rogério Cezar de Cerqueira Leite "Criar dificuldades para vender facilidades" (Folha, 21/11), que a MP é de tal forma indefensável que, para correr em seu auxílio, foi preciso tentar atingir não só intelectualmente, mas até quanto à honra, quem se opôs ao monstrengo.
Minha história tem sido a da luta constante pela justiça; se há nela episódios mais empolgantes, têm sido os de combate contra abusos governamentais. A tribuna do Ministério Público não é balcão de negócios; lá não se compram facilidades nem se vendem consciências.
A defesa das fundações, que exerço, não tem outro sentido que não o da construção de um mundo fraterno, que poderá ser alcançado pelo desprendimento daqueles que, tendo o bastante para viver, coloquem o mais a serviço dos desvalidos.
Mas não sou eu quem está sob julgamento. Nem é o Ministério Público. Está em causa o desacerto da MP 1.591.
A nação tem presente que medidas provisórias não podem alterar o que está inscrito na Constituição. Se diz esta que cabe ao Ministério Público a defesa do patrimônio público e social, uma MP pode até criar outras instâncias -nunca suprimir essa atribuição do Ministério Público. Quem teme o custo da superposição de órgãos fiscalizadores ou propõe emenda constitucional que transfira aquela atribuição para uma "autoridade supervisora" meio orwelliana ou aceita que é essa aberração que deve ser suprimida da MP.
Na chamada Lei Pelé, em trâmite no Congresso, o governo, considerando o relevo social dos clubes esportivos, propôs que a administração deles seja fiscalizada pelo Ministério Público.
Os esportes movimentam hoje somas bilionárias; se houvesse laivo de interesse pessoal ou corporativo, estaria eu defendendo o projeto de lei e não assumindo o ônus de criticar a MP.
Não é prática corrente, como supõe o professor, que entidades sem fins lucrativos paguem ajuda de custo a conselheiros e salário a diretores. A gratuidade dessas funções tem prós e contras, convindo um debate sobre o tema.
Mas, ainda agora, a MP 1.602 renovou a proibição de pagamento ao dispor que, para gozar de imunidade ou isenção, os entes não lucrativos estão obrigados a "não remunerar, por qualquer forma, seus dirigentes".
Quando, por uma série de normas dessa nova MP, asfixiam-se Santas Casas, colégios confessionais, creches e asilos benemerentes, como se houvesse uma orquestração para acorrentar a sociedade ao governo, salta aos olhos a diversidade de tratamento dispensada às organizações sociais, com diretores assalariados e conselheiros reembolsados por despesas de hotel, de transporte, de dias de trabalho perdidos.
É fácil explicar como, sem ter 50% dos cargos no conselho, conseguirá o governo controlar as organizações: na minha infância, quando crianças ricas e pobres se reuniam na rua para jogar futebol, os donos da bola, não mais que três ou quatro, arrogavam-se o direito de escalar o time inteiro.
A MP prevê algo semelhante: os conselheiros do governo se reúnem com alguns outros para escolher os ocupantes de até 30% dos cargos. Esses últimos cooptados e mais alguns representantes de entidades que se dobrem às "sugestões" do governo dão a este a possibilidade de escolher toda a diretoria (e sempre lhe sobrará a possibilidade de levar a bola embora...).
Os donos da bola, depois de escolher seu time, queriam muitas vezes escalar o adversário e apitar o jogo, invalidando os gols que sofressem, marcando em seu favor pênaltis inexistentes e decidindo a hora de acabar a partida.
A MP dá ao governo soma de poderes semelhante: ele credencia as OS, resolve celebrar com elas contratos de gestão, destina-lhes verbas, fiscaliza a aplicação dos recursos, julga o funcionamento da entidade na qual têm assento delegados seus.
A consciência jurídica universal repele tamanha concentração de poderes. Um complexo sistema de freios e contrapesos, em todo o mundo civilizado, se estabelece para limitar o Estado e defender a sociedade. Só as ditaduras apostam nas virtudes do despotismo.
Sob a crítica de alguns e o aplauso de outros, o governo atual vem na linha da privatização do Estado. O que propõe a MP 1.591 é a estatização da sociedade. Isso merece a condenação de todos.

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