São Paulo, segunda-feira, 8 de dezembro de 1997
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Ganhos para a democracia

MOHAMED KHEDER ZEYN

Nos últimos três anos, no convívio direto com a comunidade acadêmica e científica, aumentou muito a minha convicção de que esse segmento não deve em hipótese alguma estar desconectado dos objetivos e interesses da sociedade.
Uma apaixonada polêmica tem sido travada, por meio da Folha, sobre a MP 1.591, que possibilita ao governo qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos e transferir-lhes a execução de tarefas até agora realizadas por fundações, autarquias ou pela própria administração pública.
Isso se daria mediante contratos de gestão, que incluem cessão de recursos públicos nas áreas de saúde, educação, cultura, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente.
A MP sofreu violento ataque do curador de fundações do Ministério Público paulista, Carlos Francisco Bandeira Lins. Ele destacou o fato de que a medida permite ao governo federal escolher de forma discricionária as organizações que receberão recursos públicos para a realização de seus contratos de gestão.
Bandeira Lins advertiu que as organizações sociais poderão ser vulneráveis à vontade dos governantes, servindo aos interesses privados daqueles a quem o administrador de plantão queira favorecer.
Pela MP, de 20% a 40% dos conselhos de administração das organizações serão constituídos por representantes do poder público, e de 20% a 30%, por entidades da sociedade civil. Bastaria que parte destas fosse cooptada pelo administrador público desonesto.
Conforme o artigo 15 da MP, a administração pública federal direta, autárquica e fundacional fica dispensada de licitação para celebrar contratos de prestação de serviços com as organizações sociais. Estas, por sua vez, estão dispensadas de seguir as regras do poder público para gerenciar pessoal e contratar produtos e serviços.
De outro lado, o professor Rogério Cezar de Cerqueira Leite mostrou que a MP representa um avanço histórico em termos de administração pública. Argumentou que ela permite desburocratizar e modernizar tarefas públicas sem as amarras paralisantes atualmente impostas pela legislação, que muitas vezes funcionam na base de "criar dificuldades para vender facilidades".
Quanto à vulnerabilidade das organizações à corrupção, Cerqueira Leite concorda com Bandeira Lins, mas lembra, muito apropriadamente, que políticos e administradores públicos já alimentam profusamente interesses particulares em fundações e sociedades sem fins lucrativos, atualmente existentes nas áreas da saúde e do ensino.
O fato é que o conceito de organização social representa um avanço inequívoco. Moderniza o Brasil, fazendo a administração pública evoluir do modelo burocrático para o gerencial. Isto é, o Estado transfere tarefas públicas a grupos privados, com participação do governo e da sociedade civil, cobrando metas, desempenho e eficiência.
Ao mesmo tempo, o modelo das organizações, ao prever a participação do governo e da sociedade civil, é um corajoso passo para estender o regime democrático a algumas instâncias que hoje deveriam, teoricamente, estar a serviço do interesse público, mas gravitam em torno de grupos corporativos.
Pode-se discutir se a fórmula prevista na MP 1.591 é ou não satisfatória para evitar que as organizações sociais se transformem em mais um instrumento de corporativismo ou de corrupção.
Mas não há como questionar que, em assuntos fundamentais como educação, saúde, ciência e tecnologia ou preservação do meio ambiente, a organização social é essencialmente mais democrática que a administração direta, autárquica ou fundacional.
Por ocasião da minha passagem pela Fundação do Sangue, uma das constatações que mais me impressionaram foi a ausência, no conselho de administração, de um representante daqueles que necessitam permanentemente da fundação: os hemofílicos.
Dirigentes de fundações, autarquias e assemelhados vivem uma dualidade. Lacunas na fixação de objetivos, direitos e obrigações abrem brechas para que suas estruturas cometam irregularidades, por mais qualificados e bem-intencionados que eles sejam. Isso muitas vezes escapa à sociedade, pois critérios e metas de avaliação dos resultados raramente vêm a público.
Quanto à preocupação sobre a suposta vulnerabilidade das organizações sociais, os melhores remédios são a sociedade civil e a imprensa. Não haverá contrato de gestão que resista ou organização que sobreviva se desvios forem imediatamente relatados pela sociedade, tendo a mídia a seu serviço.
Vamos, pois, armar-nos de coragem, possibilitando um ganho de democracia, e implantar junto com a sociedade civil um novo modelo de administração, que tem tudo para zelar pelo interesse público com modernidade e transparência.

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