São Paulo, sexta-feira, 12 de dezembro de 1997
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Philip Glass nasce de novo no Lincoln Center

GERALD THOMAS
EM NOVA YORK

Anteontem, no café da manhã, Philip Glass estava estranho. Tinha se cortado fazendo a barba e parecia atormentado. Somos amigos e parceiros há mais de uma década, e eu nunca havia o visto assim.
A vida dele é quase tão precisa quanto um cronômetro, sua rotina é obsessivamente repetitiva, parece que calculada por algum matemático inimigo do improviso, não permite esse "mal-estar".
Phil acorda todos os dias às 5h30 e começa a meditar e fazer ioga. Às 6h, começa a compor e vai até às 9h, quando está pronto para o café da manhã.
Quando estou na cidade, bato na sua porta e saímos pelos cantos do East Village em busca de um "breakfast" vegetariano.
Ultimamente esse lugar tem sido o Veselka, reduto de artistas e punks, aberto 24 horas a qualquer maníaco, bêbado ou desesperado.
As pessoas no Veselka o olham incessantemente, e ele parece cada vez mais atrapalhado. Também pudera. O semanário "Village Voice", hoje empilhado em todos os restaurantes e lojas do Village e distribuído de graça, traz sua cara (enorme) na capa desta semana, com a categórica legenda: "O homem que transformou a música moderna".
"Mas o que foi, cara?", eu perguntava em intervalos regulares, repetitivos, quase minimalistas. Nada. Pedi o café e ficamos olhando pela janela. Depois de um longo, interminável silêncio, ele respondeu: "Estou com um frio na barriga".
E mais não precisava ser dito. Anteontem era um dia especial para Glass. Era o dia em que o Lincoln Center abriria suas portas para um evento majestoso e glamouroso, com o título: "Philip Glass Comemora Seus 60 anos: Uma Retrospectiva".
É desnecessário descrever o que significa, na vida de quem sempre foi polêmico, revolucionário, enigmático e chocante, se encontrar num palco importantíssimo, desfilando fragmentos de 30 anos contínuos de suas composições para o deleite da nostalgia coletiva.
"Cadê aquele elemento da incerteza?", perguntava, protegido por um sorriso disciplinar que a prática do budismo tibetano lhe deu.
"Não sei... acho que não sei celebrar minha obra. Prefiro a insegurança de uma première vulnerável e suscetível ao seu tempo." Philip Glass parafraseava Samuel Beckett, sua maior influência.
Phil, assim como Beckett, é obcecado pela morte. Ironicamente, o dia mais infeliz na vida de Beckett foi quando lhe deram o Prêmio Nobel de Literatura, no final da década de 60. "Tudo que eu escrever a partir de hoje estará injustamente salvo dos predadores, e esse pode ser o fim do meu drama, o meu fim", dizia Beckett.
Para o público normal, e mesmo para a infelicidade de seus eternos detratores, esse evento o canonizará como um "clássico", como alguém que não precisará mais atravessar o acre-doce fogo cruzado da crítica, sempre radicalmente dividida, coisa habitual (e quase crucial) na vida de um artista de vanguarda.
Choque no público
Essa "celebração" talvez tenha começado quando, no final dos anos 80, o Metropolitan Opera House encomendava a ele uma ópera (caríssima) sobre Cristovão Colombo, a ser encenada em 92.
A estréia do "The Voyage" foi um choque para o público habitual do Met. Fileiras inteiras da platéia se retiravam durante o primeiro ato, e Philip, assistindo a tudo de um camarote, vibrava.
Afinal, sua obra havia alcançado o "público inimigo" em seu próprio território. O doce sabor da vingança talvez seja o ponto alto da comemoração de hoje. A vingança de um judeu de Baltimore que teve de ouvir, mais de 1 milhão de vezes, que "aquilo" que ele fazia não era música.
Hoje, mais imitado que qualquer outro compositor "erudito", Philip está entre o pop e o clássico, e seus sons pulsam cada vez melhor (aguardem a trilha do novo filme de Martin Scorsese, "Kundum". A trilha de Philip é revolucionária, mais uma vez, além de ser emocionante).
Mesmo sendo uma celebridade no mundo dos formadores de opinião, dos intelectuais de quase todo o mundo, Philip ainda conta com a animosidade explícita do potente grupo (grupelho) europeu de compositores atonais, dodecafônicos, serialistas que sobrevivem de subsídios estatais, pois não vendem um único CD.
20h30, Avery Fisher Hall, Lincoln Center. Uma platéia abarrotada urra quando Phil entra no palco, acompanhado de seu fiel "Philip Glass Ensemble".
A platéia e as muitas celebridades presentes levantam para consagrar o aniversariante. "Happy birthday, Phil", grita a platéia em uníssono.
Alguns minutos passam até que os músicos consigam tomar seus lugares. Phil está desconcertado, mas me parece feliz.
Duas horas e nove números musicais depois, o público se levanta novamente e explode de entusiasmo. Ainda consigo ver no seu rosto alguns mínimos vestígios de suas apreensões matinais.
Na certa, anteontem foi um dia excepcionalmente especial para Philip Glass. Foi um dia em que sua emoção estava transparente como nunca no palco. Podia até se ver que, mesmo enquanto tocava, Philip fazia um orgulhoso inventário de sua vida.
Hoje, certamente, Philip Glass nasceu de novo.

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