São Paulo, sábado, 13 de dezembro de 1997
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O medo

RUBENS RICUPERO

No poema do mesmo nome, Drummond parte de uma epígrafe de Antonio Cândido: "Porque há para todos nós um problema sério (...). Este problema é o do medo." Não conheço a "Plataforma de Uma Geração", onde o poeta foi buscar a frase. Mas como o poema é de 1941-42, não será difícil imaginar do que tinham medo os contemporâneos de Antonio Cândido: eram os anos do nazi-fascismo, da guerra, da ditadura do Estado Novo.
Ao celebrar os 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, é interessante notar que naquele mesmo 1941, na mensagem ao Congresso, o presidente Roosevelt enumerava as quatro liberdades que deveriam edificar o mundo do após-guerra. Elas eram: liberdade de expressão, liberdade de prestar culto a Deus, liberdade de não sofrer privação e necessidade, liberdade de não sofrer medo.
Em vez de avançar, caminhamos para trás, ao menos em termos do consenso unânime que existia então em relação ao vínculo inseparável entre ser livre do medo e ser livre de sofrer necessidade. Leia-se, por exemplo, este trecho: "Chegamos a compreender claramente que a verdadeira liberdade individual não pode existir sem segurança e independência econômica. 'Homens necessitados não são homens livres'. As pessoas sem emprego fornecem a matéria-prima de que são feitas as ditaduras (...) aceitamos por assim dizer uma segunda Carta de Direitos (...). Dentre eles: o direito a um trabalho útil e remuneratório nas indústrias, lojas, fazendas ou minas da nação, o direito de ganhar o suficiente para ter alimentação, roupa e recreação adequadas (...)."
Pode-se pensar que essas palavras foram escritas por algum marxista desejoso de condicionar a liberdade política à econômica ou opor a democracia proletária à burguesa. Nada mais falso: elas foram extraídas da mensagem de Roosevelt ao Congresso em 1944. É por isso que sua morte, um ano depois, provocou sentimento geral de perda e orfandade de que me lembro vivamente, embora só tivesse oito anos.
Graças a ele e, sobretudo, à sua esposa, Eleanor, a declaração é um documento equilibrado. Nela, ao lado dos direitos civis e políticos, se reconhece o direito ao trabalho, à livre escolha do emprego, à proteção contra o desemprego, à saúde, à educação, à participação na vida cultural.
Como estamos longe dessa nobreza de visão! O repúdio ultraconservador ao New Deal acabou por rejeitar, não só os equívocos do movimento, mas também seus acertos. Tem-se mesmo às vezes a impressão de que a direita americana detesta no New Deal mais as qualidades do que os defeitos.
Esqueceu-se depressa o que os contemporâneos do nazismo e da guerra haviam aprendido na dura escola dos anos 30: que o desemprego maciço é caldo de cultura de extremismo e desintegração social. É desolador, nesse sentido, que os alemães tenham adquirido horror histórico à hiperinflação, mas não ao desemprego, tão ou mais responsável pelo que veio depois.
A meta, antes humana do que keynesiana, do pleno emprego foi atirada à lata de lixo da história. Governos escravizados aos mercados financeiros tornaram-se mais sensíveis aos interesses de rentistas e especuladores do que aos milhões de desempregados sem poder. O falso alívio trazido pelo fim da ameaça comunista teve efeito deplorável: narcotizou as consciências, embotou as inteligências.
No Brasil, como era de esperar, a situação é ainda pior. Não conseguimos nem assegurar o primeiro dos direitos, o da vida. Vivemos cada vez mais aterrorizados, sitiados por uma violência, que, por não ser politicamente organizada, não é menos a expressão de profundo e impiedoso conflito social. A polícia, em lugar de proteger, mete medo, sensação que Chico Buarque consagrou no tragicômico "Chame o Ladrão". A população, traumatizada pela brutalidade do crime, se insensibilizou diante de atrocidades cometidas contra verdadeiros ou pseudocriminosos. Cinco anos depois dos massacres da Candelária, dos Ianomamis, do Carandiru, de Vigário Geral, a punição foi irrisória, quando houve. O único sobrevivente da Candelária, após dois atentados e sete balas no corpo, vive longe do Brasil sem ter recebido uma reparação financeira que lhe permitisse operar-se, receber tratamento psicológico, reintegrar-se a uma vida normal.
Na quarta-feira, Dia dos Direitos Humanos, participei no Palácio das Nações, em Genebra, de debate para marcar a data. Voltei para casa com uma esperança tímida. Mal cheguei, telefonema do Brasil me trazia a notícia de novos massacres. Não só estamos perdendo a batalha pelos direitos elementares. O desemprego passou a crescer entre nós como nos países industrializados. Só que eles ao menos gozam dos direitos fundamentais, além de eficaz proteção social.
Ao medo do presente, do crime e da violência, junta-se agora o medo do futuro, a insegurança do emprego. Em relação às violações dos direitos humanos, as autoridades mudaram de discurso. Já não negam a evidência, nem se escondem atrás da soberania, como se fazia no passado. Falta, porém, uma reação mais vigorosa, dos governos, mas também de todos nós, da sociedade contra os que toleram ou fomentam a brutalidade policial, mesmo se forem aliados políticos. Falta, em outras palavras, agir contra o medo. Pois, como nos ensinou Roosevelt, só de uma coisa devemos ter medo: do próprio medo.

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