São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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A retórica monumental de Ponge

MICHEL PETERSON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Procurando esclarecer os motivos que conferem à sombra de Sócrates sobre a história do pensamento e da arte uma pregnância infinita, Nietzsche, em "A Origem da Tragédia", chega a relacionar o medo e a inveja que os gregos provocam em nossa civilização com o nascimento do homem teórico. Se o pai da maiêutica pode ser contado não somente entre os caminhantes e os falantes, mas também entre os aurigas, os condutores de carros de cavalos nas corridas, é porque encarna uma nova forma de existência que lhe permite escapar ao derrotismo dos moralizadores que fazem comércio com a estultícia. "Como o artista", escreve Nietzsche, "o homem teórico se satisfaz inesgotavelmente com aquilo que é, e, como a ele, essa satisfação o preserva das consequências éticas e práticas, cujo olho de Lince brilha nas trevas". Assim está definido um dos aspectos vitais do trabalho de Francis Ponge, nascido "com um pé no outro século", em 1899, e morto em 1988, no anoitecer de sua travessia por todos os grandes momentos críticos da literatura francesa de nossa época. Estamos diante de um daqueles cuja obra é destinada a crescer, pois ela permanece, e permanecerá, sem dúvida ainda por muito tempo, diante de nós.
A razão é simples: a obra pongiana é tão luminosa quanto a de Heráclito, na medida em que interroga pela palavra e pela linguagem a identidade do homem em seu devir. Segue, portanto, de alguma forma, a lição do efésio, um de cujos fragmentos diz quanto "é difícil lutar contra seu coração, pois o que ele quer é comprado a preço de alma". Essa luz que nos faz ver o lado lodoso da paixão e do sujeito faz igualmente tremer em sua pretensão e em seu delírio o cogito. Ponge quer acabar com todas as formas de julgamento e de conhecimento fundadas em verdades últimas. Ao escrever seu célebre "Le Parti Pris des Choses", a propósito do qual só agora começam a se desfazer os mal-entendidos, Ponge, em seus "Proêmes", opõe à hipótese de Sísifo uma postura metalógica que elimina a sujeira nostálgica da metafísica ou do messianismo ontológico na qual nos comprazemos em chafurdar.
O objetivo de Ponge é simples: fundar um novo classicismo, cuja lei -que se aplica ao homem- seja a do equilíbrio simples. Por isso, Malherbe, com Mallarmé, Lautréamont, Braque, Rameau e alguns outros, é para ele um mestre, pois soube combater com a linguagem o pensamento onde quer que este buscasse erigir-se em sistema, em Descartes ou em Hegel, sem, no entanto, cair no delírio da dúvida ou no utilitarismo. Desejando "dar a gozar ao espírito humano", Ponge adota um radicalismo que o leva de saída a recusar as designações de artista e de poeta. Esse classicismo, baseado no desgosto pelas idéias, requer não a rigidez das prescrições, mas a abertura para o descentramento e para o impossível, o impossível acabamento do poético, o qual redobra o do inventário das coisas.
Ponge se concebe sobretudo como um metatécnico, um pirotécnico, isto é, como um homem teórico, desde que se veja neste último a atitude perante a verdade e não perante o trabalho da linguagem. A "tolice" de Sócrates foi crer que o poeta procura dizer algo, significar, dizer em outros termos o que quer dizer. Ora, o poeta, segundo Ponge, não procura dizer, ele diz, "em próprios termos". Daí uma evidência que implica um questionamento brutal da metáfora, o qual passa paradoxalmente por uma subversão da alegoria que articula a fábula.
Que o homem técnico se chame Sócrates não é o que realmente importa. Fazer o espírito gozar contra o pensamento -concebido como "careta"- é recusar o êxtase néscio e pomposo do artista e do filósofo. Numa passagem enxertada em "Ísis e Osíris", de Plutarco, Nietzsche precisa que, "se o artista, cada vez que se desvela a verdade, não pode jamais senão ficar suspenso, com o olhar extasiado, ao que ainda resta de véu após o desvelamento, o homem teórico, ao contrário, é aquele que encontra apaziguamento e satisfação ao ver arrancado o véu e não conhece prazer maior do que conseguir, com suas próprias forças, fazer cair novos véus".
Assim está definido o projeto "científico" pongiano. Se a língua engana, impõe-se uma política sistemática de levantamento de véus, política que deve evitar qualquer romantismo, até -e sobretudo- quando se fala da Natureza. Parábola da monotonia do discurso cotidiano, um texto como "Fauna e Flora" (leia abaixo) exemplifica a recusa de Ponge a celebrar cegamente nossa Mãe comum. Sob a multiplicidade, sob a superabundância da vegetação, não reside, na verdade, mais do que uma reprodução do idêntico. A flora só vomita o mesmo. Longe de ser o signo do vivente, é pura podridão, apelo encarniçado à morte, à petrificação.
O segredo para chegar a ver, superando o desgosto da flora: desnudar-se para pôr em cena de maneira obscena sua casca, isto é, a linguagem em sua mais simples expressão. "Penso", dizia Bataille, "como uma moça tira seu vestido". Ao que Ponge acrescenta, em "La Parolle Etouffée sous les Roses": "É um exagero chamar uma moça de Rosa, pois é querer vê-la sempre nua ou com vestido de baile...". O excesso é antes de mais nada desnudar a palavra, ouvir sua vida, uma vez que ela tenha sido desencardida.
Lavar o sexo da linguagem para pôr a nu seu caráter andrógino equivale a reencontrar por meio do ditirambo a música dionisíaca perdida, o ressoar do cosmos, dos significantes. Deve-se, a seguir, adotar os gêneros eternos que monumentalizam a escritura na pedra. É o aforismo, e Roma. Resta o dizer, sempre polpado no movimento do sangue rubro. A palavra oracular é, então, o quinhão de quem louva a variedade das coisas.
Desde os textos ditos fechados e de feitura mallarmeana dos anos 20 a 50 até os imensos canteiros de escritura dos anos 50 a 80, a obra se tornou cada vez mais complexa e aberta a uma história monumental no seio da qual a Natureza, revisitada, rejeita a Beleza convulsiva, subtraindo a poesia à duração, elevando-a à altura da rocha insubmersível, o que explica os longos devaneios erótico-etimológicos graças aos quais Ponge encontra, por vezes, além do indo-europeu, as raízes védicas da língua articulada.
Um tal materialismo deve tomar as palavras como objetos concretos, assim como os objetos da natureza, com a diferença de que as primeiras são fabricadas pelo homem. Em suma, fazer com que as significações jorrem para fora das palavras, fazer delas ESCVLTVRAS. Impronunciáveis, as palavras são vistas como inscrições que falam.
Esta não é a menor singularidade de Ponge, que, ao longo de seu percurso, conjuga o anarquismo mais estrito com o papel de ministro da língua francesa perfilado ao lado de Georges Pompidou. É somente quando alguém se monumentaliza, por intermédio de si ou do outro, quando alguém se institui como representante dos grandes deste mundo, que ele pode melhor focalizar a linguagem. O homem teórico não busca a consagração de seu próprio nome. Pelo contrário.
A "Entrevista por Ocasião da Morte de Stálin" (leia na página ao lado) é, sob este aspecto, reveladora, pois hoje o cúmulo do refinamento, tão pesado, continua sendo o peso do nome, leva a fazer da casa do Comissário do Povo das Nacionalidades um hotel, um templo culinário em que desfilam piedosamente os "fiéis". Os nomes da história, é no dicionário de nomes comuns, no "Littré", que Ponge os encontra, confundidos com os objetos mais cotidianos. Reside nisso a verdadeira glória.
Se a retórica de Ponge é, portanto, monumental, é na medida em que o monumento, longe de apresentar a face do eterno, da dureza e da imutabilidade cristalinas, se desenvolve no horizonte de um devir tão incerto quanto o da palavra. Cada texto encontra, assim, a pompa do mausoléu, e o corpo que ele abriga assina ao mesmo tempo o progressivo desvelamento do esqueleto e o crescimento dos versos. A pedra do monumento encontra sua fonte no lugar de sua futura fragmentação. Ponge poeta das coisas, sim. Mas somente se se ouvir de sua obra uma coragem que, por meio da retórica monumental, deixa falar o mundo em todas as suas metamorfoses.

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