São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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FAUNA E FLORA

FRANCIS PONGE
A FAUNA SE MEXE, AO PASSO QUE A FLORA SE DESDOBRA À VISTA.

Toda uma espécie de seres animados é diretamente assumida pelo solo.
Eles têm no mundo seu lugar assegurado, como na antiguidade sua decoração.
Diferentes nisso de seus irmãos vagabundos, não são aditados ao mundo, importunos ao solo. Não erram em busca de um lugar para seu morto, se a terra como dos demais absorve cuidadosamente seus restos.
Entre eles, não há preocupações alimentares ou domiciliares, nem entredevoração: não há terrores, corridas desabaladas, crueldades, queixas, gritos, palavras. Não são os corpos segundos da agitação, da febre e do assassinato.
Assim que surgem à luz, têm mansão na rua, ou na estrada. Sem nenhuma preocupação com os vizinhos, não entram uns nos outros por via de absorção. Não saem uns dos outros por gestação.
Morrem por dessecação e queda no solo, ou antes, aluimento in loco, raramente por corrupção. Nenhum lugar de seu corpo particularmente sensível, a ponto que perfurado causa a morte de toda a pessoa. Mas uma sensibilidade relativamente mais cosquilhenta ao clima, às condições de existência.
Eles não são... Eles não são...
Seu inferno é de uma outra espécie.
Não têm voz. São mais ou menos paralíticos. Não podem chamar a atenção a não ser por suas poses. Não parecem conhecer as dores da não-justificação. Mas não poderiam em absoluto escapar pela fuga dessa obsessão, ou acreditar escapar dela, na embriaguez da velocidade. Não há neles outro movimento que não a extensão. Nenhum gesto, nenhum pensamento, talvez nenhum desejo, nenhuma intenção, que não resulte num monstruoso crescimento de seu corpo, numa irremediável excrescência.
Ou antes, e que é bem pior, nada de monstruoso por desventura: malgrado todos os seus esforços para "se exprimirem", não chegam jamais senão a repetir um milhão de vezes a mesma expressão, a mesma folha. Na primavera, quando, cansados de se reprimirem e não aguentando mais, deixam escapar uma torrente, um vômito de verde, e acreditam entoar um cântico variado, sair de si próprios, estender-se a toda a natureza, enlaçá-la, ainda não conseguem realizar senão, em milhares de exemplares, a mesma nota, a mesma palavra, a mesma folha.
Não se pode sair da árvore com meios de árvore.
*
"Não se exprimem a não ser por suas poses."
Não há gestos, multiplicam apenas seus braços, suas mãos, seus dedos -à maneira dos budas. É assim que, ociosos, vão até o fim de seus pensamentos. Não são mais que uma vontade de expressão. Não têm nada escondido para si mesmos, não podem guardar nenhuma idéia secreta, desdobram-se inteiramente, honestamente, sem restrição.
Ociosos, passam o tempo complicando sua própria forma, aperfeiçoando no sentido da maior complicação de análise seu próprio corpo. Onde quer que nasçam, por mais escondidos que estejam, só cuidam de levar a cabo sua expressão: preparam-se, adornam-se, aguardam que venham lê-los.
Têm a sua disposição para chamar a atenção sobre si apenas suas poses, apenas linhas, e por vezes um sinal excepcional, um extraordinário apelo aos olhos e ao olfato sob forma de ampolas ou de bombas luminosas e perfumadas, que se chamam suas flores, e que são, sem dúvida, chagas.
Essa modificação da sempiterna folha significa certamente alguma coisa.
*
O tempo dos vegetais: parecem sempre hirtos, imóveis. Viramos as costas por alguns dias, uma semana, sua pose ainda se precisou, seus membros se multiplicaram. Sua identidade não deixa dúvida, mas sua forma se realizou cada vez melhor.
*
A beleza das flores que murcham: as pétalas se retorcem como sob a ação do fogo: é isso, aliás: uma desidratação. Retorcem-se para deixarem ver as sementes às quais decidem dar sua chance, o campo livre.
É então que a natureza se apresenta perante a flor, força-a se abrir, a se desabotoar: ela se crispa, se retorce, recua, e deixa triunfar a semente que sai dela que a havia preparado.

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