São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997
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A inaceitabilidade da morte

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Enquanto personagem literária, Holden Caulfield já demonstrou seu caráter duradouro e provavelmente imperecível. Quarenta anos de leitura não diminuíram em nada sua capacidade de nos comover, sua habilidade de representar o idealismo e a recusa a ser iludido que marcam a tradição americana de representação da adolescência. Ele guarda seu lugar na sequência que vai do Huckleberry Finn de Mark Twain a seus descendentes em Hemingway, Scott Fitzgerald e Faulkner, até os protagonistas indignados das ficções da moral em Philip Roth. O que para Tocqueville eram nossos "hábitos do coração", as formas americanas de equilíbrio entre individualismo e preocupação social, encontram um representante chave em Holden, cuja atração vem sobrevivendo às enormes mudanças da sensibilidade em nosso país nessas últimas quatro décadas.
A força literária de Holden tem pouco a ver com os interesses explicitamente religiosos de seu autor, sejam eles budistas ou cristãos. Perseguido sempre pela morte de um irmão, Holden se livra das obsessões adolescentes com o instinto sexual, mas tão só para se entregar às sombras do Instituto de Morte. Ele tem o "pathos" de um sobrevivente incapaz de se orientar na arte da sobrevivência. Nem professores nem pais ou guias lhe são disponíveis, acima de tudo por conta de sua percepção limítrofe de que a maturidade e a consciência da morte são uma mesma e única condição -uma ilusão de identidade que já é em si uma expressão da morte. A inocência e a beleza, escreveu Yeats, não tem nenhum inimigo, exceto o tempo; mas o pobre Holden chega tarde demais na história para ser capaz de manifestar semelhante confiança, característica do alto romantismo.
Holden é essencialmente uma voz narrativa, que tem sua fonte direta no Nick Carraway de Fitzgerald ("O Grande Gatsby"), com Huck Finn pairando um pouco mais atrás. A maior diferença é que Holden é um desesperado: mesmo seu humor fica na fronteira da loucura. Mas seu desespero é cheio de vivacidade; e não há leitor que não o receba com afeto. Como representação de um garoto de 16 anos, o retrato de Holden atinge uma qualidade atemporal, em desacordo com a dimensão verdadeira do livro, que é um romance de época, uma visão dos EUA logo após a Segunda Guerra.
Essa natureza atemporal do herói de Salinger está menos ligada a sua recusa em amadurecer do que a sua negação religiosa do tempo. A religião americana, praticamente desde suas origens, fica mais próxima do gnosticismo do que do cristianismo. E o tempo, no gnosticismo, não é um agente de redenção, mas um inimigo, porque é o resultado da Criação-Queda na qual fomos lançados, das alturas de uma plenitude original para esse mundo de fúrias e separações. Holden vive assombrado pelo sentido tipicamente gnóstico de que o que há nele de melhor e mais antigo não faz parte da Criação.
A religiosidade de Holden não é só o resultado do interesse de Salinger por esoterismos orientais, mas sim de um débito para com Fitzgerald e Hemingway, cujos protagonistas tendem a ser encarnações puras da religião americana. A liberdade, para personagens como Gatsby ou Jake Barnes (em "O Sol também se Levanta"), como também para Huck Finn, só é possível na solidão e não se realiza jamais na vida sexual, que é presa do tempo.
O amor, para Holden, é algo de possível, mas só pelo irmão morto, ou por sua irmã de dez anos, Phoebe. Holden observando Phoebe na chuva faz pensar em Nick Carraway no funeral de Gatsby, ou Frederic Henry caminhando para longe depois da morte de Catherine ("Adeus às Armas"). Em todas essas cenas, a chuva constitui um batismo gnóstico americano, um tornar-se livre pela via do conhecimento.
A inocência de Holden Caulfield, ao contrário da de Huck Finn, vem se nutrir no contexto da religião americana, aquele amálgama curioso de idealismo emersoniano e messianismo nacional. Holden não tem uma doutrina redentora, nem qualquer autoridade espiritual a quem possa recorrer, mas sua sensibilidade é inteiramente religiosa. Na sua essência, "O Apanhador no Campo de Centeio" é uma peregrinação ou busca, e Holden sobrevive como a versão desolada de um Adão americano, sonhando para si um papel de Jesus, salvador das crianças: "O que eu tenho de fazer -tenho de apanhar todo mundo se eles começaram a cair do penhasco". Ao apanhar-se a si próprio, no último instante, Holden ao menos consegue inventar um novo começo.
Holden tem uma capacidade imensa de sentir empatia pelos outros, como é imensa, também, sua aversão a tudo o que não seja autêntico. É isso o que está por trás da eloquência de suas últimas palavras:
"D.B. me perguntou o que eu acho de toda essa história que acabei de contar. Não tinha a menor idéia do que dizer. Se você quer saber a verdade, eu não sei o que acho disso. Me arrependo de ter contado para tanta gente. Praticamente só o que sei é que eu sinto uma espécie de saudade de todo mundo sobre quem já falei. Até do velho Stradlater e de Ackley, por exemplo, Acho que sinto saudade até do infeliz do Maurice. É engraçado. Não conte nunca nada para ninguém. Se contar, vai começar a sentir saudade de todo mundo".
Esse afeto do narrador por seus personagens já é um anúncio da recuperação quase completa de Holden. Talvez ele venha a se tornar o seu criador, Salinger; ou quem sabe, como Huck Finn, parta na direção de algum outro território. De qualquer modo, terá a perspectiva de uma passagem da sobrevivência à liberdade. Se ele nos comove tanto, isso se deve em parte à sua vulnerabilidade e simpatia, mas talvez em maior medida às sugestões que encarna, de ordem religiosa, e que nos conduzem, mais uma vez, àquela curiosa modalidade espiritual que se chama religião americana. Sua marca é a inaceitabilidade da morte, ou uma paixão pela sobrevivência, a qualquer custo. E o que há de mais americano em Holden é essa aliança complexa entre uma vontade desesperada de sobrevivência e um instinto de autodestruição que parece enamorado da morte.
Fábulas da inocência são recorrentes na literatura dos Estados Unidos e formam um elemento crucial da religião americana. Se alguém me pedisse para indicar as parábolas mais notáveis da inocência na ficção americana moderna, escolheria "Miss Lonelyhearts", de Nathanael West, "Enquanto Eu Morria", de Faulkner, e "O Leilão do Lote 49", de Thomas Pynchon. Miss Lonelyhearts, Darl Bundren e Oedipa Maas ficam todos exasperados pela sugestão de uma bondade primal perdida, mas até hoje clamando por nós na América; e sua busca dessa intensidade original da existência permanece cheia de propósito, mesmo se catastrófica.
Mas essas são parábolas da escuridão e precisam ser complementadas pelas fábulas mais nostálgicas de "O Sol também se Levanta", "O Grande Gatsby" e seu irmão mais moço e franzino, "O Apanhador no Campo de Centeio". Jake Barnes e Nick Carraway têm necessariamente mais experiência e sobriedade do que Holden Caulfield. Mas Holden compartilha da sua nostalgia, do afeto por todos cujas histórias são eles que narram. Se Holden também compartilha de sua falta de propósito, isto é porque uma busca vazia é parte da crença na religião americana, tanto quanto a intensidade obscura dos instintos nas personagens de Faulkner, West e Pynchon.

Tradução de Arthur Nestrovski.

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