São Paulo, segunda-feira, 15 de dezembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Vinho e vento compõem paisagem

ALBERTO HELENA JR.
DO ENVIADO ESPECIAL A PORTUGAL

No dia seguinte, desperto com a sede dos mouros, não sem razão. Afinal, na noite anterior, travara vitoriosa batalha com algumas garrafas, digo, cápsulas, do melhor vinho tinto da região do Dão à mesa farta do cassino do Estoril.
Enquanto aqui abatia as cápsulas de rubi, lá no palco desenrolava-se um espetáculo de tirar o chapéu. Ou de colocá-lo, já que o personagem central desse musical, com cores da Broadway e espírito tipicamente belle époque europeu, são o poeta Fernando Pessoa, de chapéu, bigodinho e guarda-chuva, como bem o retratou Almada-Negreiros, e seus heterônimos.
Além da sede, lastimava não ter podido arriscar uma fezinha nas mesas do cassino, um dos maiores e mais luxuosos da Europa.
Faça-o por mim, ó leitor, quando por lá estiver.
Mais importante, agora, é retomar a minha, até agora, infrutífera busca pelo abridor de cápsulas. Levo a mão ao telefone, mas não há tempo. Tenho de apressar-me para juntar-me aos outros no cumprimento da programação prevista.
E lá vamos todos encarapitados numa moderníssima perua, a percorrer Cascais e o Estoril, pérolas lusitanas ao sol. Mas, à chuva que cai incessante, apenas balneários desolados.
O fim da Europa
Vislumbro a praia do Guincho lá embaixo, enquanto subimos uma serrinha em direção ao cabo da Roca, o último braço europeu estendido a oeste.
Lá longe, varrido por um vento de levantar vôo as naus fantasmas, tento imaginar, além do horizonte, nosso Porto Seguro.
O vento não deixa e nos leva à Sintra de Eça, onde, entre os casarios e as ruelas estreitas, ou à parte deles, erguem-se o palácio da Vila e o palácio da Pena, um monumento ao amor desbragado de um príncipe por sua amada.
Esqueci os nomes, onde anotei mesmo? Ah, deixa pra lá. Vamos ao almoço, de peixes, é claro, no restaurante Regional de Sintra e, logo a seguir, ao hotel.
Mal chegado, toco pra baixo: e o meu abridor de cápsulas, cáspite?
É um novo personagem -o garçom- quem me atende. Bate à porta, e, gentilmente, me explica que o abridor de cápsulas encontra-se no quarto de banhos, ao lado de espelho. Não se encontra.
"Ah, pois, encontra-se, permita-me?" Pois não. Entra, examina detidamente o local e sai balançando a cabeça: "É, pois, não se encontra mesmo". E sai de cena, prometendo resolver de pronto essa maçada.
Volta meia hora depois: "Pois, falei à gerência, e a gerência me assegurou que há um abridor de cápsulas no quarto de banhos, ao lado do espelho". Disfarço meu estupor e indico-lhe num gesto aberto de braço que o quarto de banhos, com seu respectivo espelho, está novamente a seu dispor para a inspeção de praxe.
Atônito, constata pela segunda vez o que já havia sido constatado por ele mesmo e pelo porteiro da noite. Antes de sair, estanca diante de mim e deposita uma sólida promessa: "Vou resolver definitivamente o seu caso, meu senhor. Fique tranquilo". Fiquei, espiando as garrafas, digo, cápsulas, brilhantes à claridade do dia, ensombrecendo-se à chegada da noite.

Texto Anterior: PACOTES
Próximo Texto: Guias promovem viagem em dobro
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.