São Paulo, terça-feira, 16 de dezembro de 1997
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Ameaça à poupança previdenciária

ADACIR REIS

O recente pacote fiscal do governo Fernando Henrique Cardoso promove um duro golpe nos fundos de pensão, podendo até mesmo inviabilizar a poupança previdenciária do país.
A chamada MP do Imposto de Renda, convertida pelo Congresso na lei ordinária 9.532/97, subverte o conceito de imunidade tributária da Constituição federal (art. 150, inciso VI, alínea "c") e altera o art. 14 do Código Tributário Nacional (lei complementar, de status superior), responsável pela definição das precondições para o benefício da imunidade, cometendo erros grosseiros, o que nos traz à lembrança aquela frase do velho Bismarck: "Ah, coitado do povo, se soubesse como são feitas as leis e as salsichas"!
Não bastasse a afronta ao texto constitucional e às leis superiores, pelo diploma legal que passará a vigorar a partir de janeiro de 98 até mesmo as entidades contempladas pela nova conceituação e pelos novos requisitos deverão "pagar Imposto de Renda sobre os rendimentos e ganhos de capital auferidos em aplicações financeiras de renda fixa ou de renda variável".
Trocando em miúdos, mesmo a entidade considerada imune passa a ter uma imunidade parcial e limitada, o que atinge em cheio as entidades fechadas de previdência privada, que, em consonância com as normas do Conselho Monetário Nacional, têm 85% de seu patrimônio (cerca de R$ 68 bilhões) em aplicações de renda fixa e renda variável.
A mudança das regras, de acordo com projeções da Abrapp (entidade que reúne o sistema), pode subtrair dos fundos cerca de R$ 2 bilhões só em 1998, provocando graves desequilíbrios atuariais, com prejuízos para os participantes e para as empresas patrocinadoras, inclusive as estatais. Tudo isso ocorre no momento em que a chamada "reforma da Previdência", além de evidenciar a insuficiência da Previdência oficial, estende aos servidores públicos civis, a partir de determinada faixa salarial, o sistema de complementação de aposentadoria com base no regime de capitalização.
Há duas modalidades clássicas de fundos de pensão: os abertos, comercializados livremente no mercado por bancos e seguradoras, com finalidade lucrativa, estão no capítulo do "sistema financeiro" da Constituição; os fechados, baseados na relação empregatícia e circunscritos ao universo de uma empresa, localizam-se no capítulo da "ordem social".
Ademais, cumpre esclarecer que fundo de pensão não é privilégio de funcionário de estatal, já que, de cerca de 350 fundos de pensão em funcionamento no Brasil, temos quase 2.000 empresas patrocinadoras situadas na iniciativa privada -muitas delas, ao contrário das empresas públicas, financiando integralmente o fundo de pensão de seus funcionários.
Também não é uma invenção brasileira, pois nasceu na Alemanha e hoje tem presença fundamental em países como EUA, Holanda e Inglaterra. Nessas economias, o tratamento tributário aplicado às entidades previdenciárias é revestido da maior solenidade, como demonstra estudo recente da Unicamp, apresentado em outubro deste ano perante o 18º Congresso Brasileiro dos Fundos de Pensão.
Regulamentados pela lei 6.435, de 1977, os fundos fechados consideram-se "complementares do sistema oficial de previdência e assistência social, enquadrando suas atividades na área de competência do Ministério da Previdência e Assistência Social".
Em face do caráter de complementaridade aos benefícios de previdência e assistência social, da ausência de lucro e do perfil de longo prazo, as entidades fechadas de previdência privada, desde o seu advento, foram contempladas pela imunidade -primeiro, sob a égide da Constituição de 1967, que falava das "instituições assistenciais", e, depois, sob a vigência da Constituição de 1988, com acréscimo da expressão "sem fins lucrativos".
Porém, já em 1983, por meio de um decreto-lei -instrumento que se revelou menos autoritário que as "medidas provisórias"- , o Executivo Federal tentou retirar a imunidade dos fundos de pensão.
Derrotada nos mais variados tribunais do país, a voracidade do fisco encontrou na Constituição de 88 um pretexto novo para suas velhas pretensões, razão pela qual a matéria ainda está sob exame do Supremo Tribunal Federal. Com o "pacote", o governo busca liquidar a questão fora do STF, insistindo em alterar unilateralmente as regras do jogo.
Por fim, além de outros equívocos, como a limitação da dedutibilidade das contribuições previdenciárias do empregador e do empregado para efeito de Imposto de Renda, vale registrar mais uma pérola: o Código Tributário Nacional, ao definir os requisitos para o gozo da imunidade, determinava que as entidades imunes deveriam aplicar integralmente, no país, seus recursos.
Por alguma razão não conhecida, ou por um erro colossal desse "pacote" (em meio a tantos erros já anunciados pela imprensa), o dispositivo ora em exame suprimiu a expressão "no país", possibilitando a todas as entidades de "educação e de assistência social", com ou sem imunidade (inclusive os fundos de pensão), aplicação de seus recursos fora do Brasil.
As referidas medidas abalam a estabilidade das regras e contaminam a credibilidade do sistema de poupança previdenciária, podendo fazer do trabalhador que pensa na aposentadoria uma espécie de Cândido, aquele magistral personagem de Voltaire que, ao ver bondade em tudo, seria capaz de aplicar seu rico dinheirinho num plano de previdência privada.

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