São Paulo, quarta-feira, 17 de dezembro de 1997
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Incentivos fiscais, a "sangria" da cultura no Brasil

PAULO PÉLICO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao que parece, começa a chegar ao fim mais um ciclo da cultura brasileira, mais um breve período de otimismo e crescimento.
Ao contrário do que se possa supor, a crise da produção cultural ora em curso está se intensificando com o pacote fiscal adotado pelo governo para nos proteger do terremoto econômico cujo epicentro está na Ásia, mas não começou exatamente com ele.
Nasceu dentro do Ministério da Cultura, por meio da medida provisória nº 1.589 de 25 de setembro deste ano e já reeditada, que modifica a Lei Rouanet.
Sem que fosse esse o propósito, a referida MP deu início a um processo que pode levar a produção cultural do país à estagnação. O documento é marcado pela contradição entre as boas intenções de seus objetivos e os danosos efeitos que realmente produz.
Embora represente um grande avanço ao ampliar o desconto das empresas para 100% do valor do patrocínio, ao mesmo tempo, faz perder mais de dois terços dos recursos financeiros disponíveis. Uma empresa, por exemplo, que devesse R$ 500 mil ao fisco, poderia destinar a um projeto de artes cênicas algo na faixa de R$ 83 mil. Com a nova MP, só poderá destinar R$ 25 mil.
E isso, repito, nada tem a ver com o pacotão anti-crash. Além de provocar essa brutal redução dos recursos, a medida flexibilizou a proibição do uso da lei por parte das emissoras de TV comerciais, passando a permitir que qualquer TV capte dinheiro por meio desse mecanismo.
O resultado será devastador, uma disputa infinitamente desigual, por recursos escassos, entre o produtor cultural independente e os grupos de comunicação do setor privado. É nesse quadro que surge a MP da área econômica. Como se não bastassem as perdas acumuladas, o "pacotão anti-terremoto" traz novas reduções, fixando em 4% o limite para as leis da cultura. Com esse percentual, a capacidade de repasse daquela empresa do exemplo acima desce para R$ 20 mil.
Apostando na nossa natural dificuldade para abstrações matemáticas, os integrantes da área econômica abusam do exercício de sofística, utilizando números e dados estatísticos para chegarem a conclusões que são verdadeiras pérolas da incongruência e do paradoxo: a Receita Federal, como quem não queria nada, lançou a sua tese para justificar as reduções dos limites. Evocou a questão da baixa utilização dos mecanismos.
Segundo ela, no tocante a gastos com cultura, as empresas aptas a fazerem uso dos incentivos deduziram somente 0,48% dos seus impostos somados -menos de um décimo dos 5% a que tinha direito. Portanto, se na prática o uso é bem menor do que o novo limite, não haveria prejuízos. Tese frágil e incoerente. Mas pegou. Com espantosa facilidade foi aceita. Fernando Rodrigues, articulista desta Folha, evocou-a na sua coluna "A choradeira dos incentivos" (26/11/97, pág. 1-2). Dia 28 último, nada menos que o editorial da Folha, intitulado "O pacote e a cultura", sustentou a mesma tese para justificar o corte. A ninguém ocorreu perguntar ao secretário da Receita: Se o setor cultural só conseguiu usar uma pequena fração do que poderia no ano passado, período de crescimento da economia, por que diabos então agora, às portas de um período recessivo, precisamos de limites ainda mais baixos? Não seria mais simples nos deixar entregues à própria incompetência, sem precisar adotar medidas desgastantes?
Que ninguém se iluda, a equipe econômica sabe perfeitamente que a baixa utilização das leis da cultura deve-se justamente aos baixos limites individuais a que as empresas estão sujeitas. Todos nós sabemos do peso que as pequenas e médias empresas têm na economia brasileira.
Com baixos limites, a Receita Federal está empurrando para fora da órbita do Marketing Cultural Incentivado uma larga faixa de empresas cujo volume de impostos, observados esses limites, não permite o patrocínio de um álbum de figurinhas. É a velha fórmula de conceder não concedendo. Bônus político sem ônus de arrecadação.
O desejo de reduzir tanto esses limites se torna uma agressão à lógica diante do fato de que o governo já dispõe de um teto anual, montante "máximo" que jamais será ultrapassado. Para efeito de economia de receita, tanto faria que o limite da empresa fosse 5%, 3%, 1% ou 20%. Isso não tiraria nada mais além daquela soma que o governo já concordou, espontaneamente, em renunciar para aquele exercício.
Para finalizar, outra proposta que foi muitas vezes repetida é a de que a conquista de um número maior de empresas para o Marketing Cultural Incentivado pudesse compensar os citados cortes.
As dificuldades dessa proposta começam quando pensamos nos projetos culturais isoladamente, na sua viabilidade individual. Com os limites baixando a níveis tão ínfimos, serão necessárias dezenas de patrocinadores para um mesmo evento cultural.
Seria útil se os defensores dessa tese perguntassem a um publicitário de juízo se ele recomendaria ao seu cliente uma ação de marketing cultural, mesmo incentivado, nessas condições.
Não se trata de querer escapar da cota de sacrifício que todos os setores devem dar. A questão é que a área cultural sozinha já perdeu mais do que vários segmentos juntos. Como foi exposto, a verba disponível daquela empresa hipotética caiu de R$ 83 mil para R$ 20 mil. Uma redução em torno de 76% nos últimos dois meses, enquanto o governo promete uma diminuição longa e gradual para outras áreas.
A atual campanha de doação de sangue encontrou a cultura acometida de grave hemorragia. O governo precisa, urgentemente, tirá-la da mesa dos doadores e colocá-la na fila dos receptores. Além de se fazer justiça, é a forma mais segura de diminuir os estragos do terremoto econômico-cultural cujo epicentro está na América do Norte.

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