São Paulo, quarta-feira, 17 de dezembro de 1997
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M., UMA CRIANÇA BRASILEIRA

O debate sobre o aborto legal ganhou interesse público desde agosto último, quando a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara aprovou o texto que cria normas para que os hospitais da rede pública de saúde atendam as mulheres que optam por interromper a gestação nos casos permitidos pela lei: quando a gravidez decorre de estupro ou representa risco de vida para a mãe.
Desde então, uma série de reações contrárias ao projeto veio à tona, na maioria dos casos motivadas por princípios religiosos ou razões de ordem moral. No meio de uma discussão que muito raramente se pautou pelo bom senso, houve até quem dissesse que o projeto promoveria uma legalização irrestrita do aborto. Chegou-se a alegar que mulheres iriam forjar boletins de ocorrência para poderem recorrer à lei.
Em meio a argumentos tão lamentáveis, a questão de fundo permaneceu obscurecida: sendo um direito previsto pelo Código Penal há 57 anos, o aborto legal na prática está restrito às mulheres que têm condições de pagá-lo em hospitais privados. Ou seja, trata-se de corrigir, ainda que tardiamente, uma forma perversa e grave de discriminação social e de limitação da cidadania.
O assunto saiu agora da generalidade e ganhou contornos muitos concretos com o caso da menina M., de 11 anos, que obteve do juiz da comarca de Sapucaia, no Rio, a autorização -sublinhe-se a palavra autorização, diferente de determinação- de realizar o aborto. Para quem não se sensibiliza diante do argumento de que a lei, por definição, vale para todos, eis uma tragédia humana muito emblemática: M. é apenas uma criança, filha de pais miseráveis e analfabetos, que foi estuprada e engravidou aos dez anos. Em nome de que razão "humanitária" deve-se impor um sofrimento adicional a uma vida já tão sacrificada se a família de M. optar por fazer o aborto a que, por lei, a menina tem direito? Pelas reações da família, parece óbvio que tal decisão jamais é tranquila e envolve um enorme desgaste emocional. Esse caso deveria servir como exemplo para quebrar a frieza dos que se arvoram em defensores abstratos da vida.

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