São Paulo, quarta-feira, 17 de dezembro de 1997
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Um choque educacional para o Brasil

JAIME PINSKY

Não que a globalização seja algo inteiramente novo na história. No limite, não passa da exasperação de um processo de muitos séculos ao qual o Brasil esteve ligado desde o descobrimento. O comércio triangular entre Europa, África e América, quando éramos colônia de Portugal, já não era propriamente uma atividade provinciana...
O que ela tem de novo é a redefinição do papel dos Estados nacionais, um incremento formidável do setor de serviços, uma tecnologia permanentemente renovada de âmbito mundial, a enorme fluidez de capitais (que há um século e meio Marx já sabia não terem pátria) e a superação da força de trabalho desqualificada. Será que o Brasil está, de fato, preparado para a globalização?
É razoavelmente consensual a idéia de que o Estado-empresário não está tendo mais espaço: não é mais sua função gerir empresas, funcionar como cabide de empregos, pagar salários incoerentes para uma minoria de funcionários à custa da maioria da população.
Isso quer dizer que o Estado deve ser mínimo, deixando que o velho liberalismo renasça das cinzas e substitua todas as funções antes atribuídas à administração pública? É evidente que não.
Há, em certos setores, uma contradição irremovível entre a necessidade do lucro, que impulsiona o empresário, e a de atendimento da maioria da população. Por isso a defesa do consumidor, o combate aos monopólios privados e o direito à arbitragem nas relações empresas/cidadãos têm sido uma grande preocupação dos Estados nacionais de capitalismo mais avançado.
As pessoas são diferentes, sim, mas não podem partir de patamares muito distintos. Uma nação moderna só se viabiliza quando todos têm direito à cidadania. Ao Estado cabe, dentro do possível, fazer todos os cidadãos terem as mesmas oportunidades.
Teríamos que pensar se estamos dando conta de suprir as necessidades básicas de todos os brasileiros e, mais que isso, se estamos nos organizando para as profundas transformações que a globalização carrega, queiramos ou não.
Não há dúvida alguma de que a resposta ao primeiro item é negativa: somos um dos países socialmente mais injustos do mundo em distribuição de renda -algo, aliás, já denunciado por vários dos nossos principais dirigentes, entre os quais os ministros da Educação e da Cultura e o próprio presidente.
Não se pode, claro, cometer a leviandade de responsabilizar o atual governo por uma situação que se mantém há séculos, mas pode-se e deve-se cobrar ação mais efetiva em alguns setores -como, por exemplo, na educação.
Logo a educação, dirá o atento leitor, em que tanta coisa está sendo feita? Sim, a educação. Exatamente por ser um dos ministérios mais operantes do atual governo, por ter nos seus quadros educadores de primeira linha, por ter imprimido dinamismo e credibilidade às suas ações, por lutar por um livro didático de qualidade e por parâmetros curriculares adequados às escolas do país inteiro é que ele pode ser cobrado.
Bons currículos e livros não podem ser acionados à distância ou por computadores. Necessitam de professores bem preparados, atualizados e com leituras em dia. Nesse aspecto, o ministério tem cometido o pecado da timidez.
A formação dos nossos professores é deficiente. Nem falamos apenas dos leigos, dos que não têm curso superior ou dos formados em cursinhos de final de semana, que ainda proliferam, sob vários disfarces. Mesmo na maioria das faculdades razoáveis, a questão do ensino é relegada a um plano secundário e as matérias pedagógicas dos cursos de licenciatura são apenas toleradas pelos demais departamentos.
Jogados diante dos alunos da rede pública, muitos professores são incapazes de operacionalizar conceitos básicos de suas áreas, não conseguem construir um conhecimento junto com o aluno e logo entram no ramerrão dos conhecimentos prontos e acabados. Usando o livro didático não como componente do seu arsenal pedagógico, mas como bengala para suas deficiências, vários estudam com o material que deveria servir para ensinar. Muitas vezes, um livro didático é o único que tanto os alunos como o professor consultaram.
Alguns Estados, como Minas e São Paulo, desenvolveram importantes programas de capacitação de professores, que incluem acesso a bibliotecas e cursos. Mas, por significativos que sejam, são fatos esporádicos. Sozinhos, não têm como suprir nossas imensas carências, que, vergonhosamente, não nos colocam bem classificados nem entre as nações latino-americanas.
É estranho que o governo, tão radical no "choque de capitalismo" infligido ao país, não tenha pensado num "choque educacional" do mesmo porte.
Um povo de analfabetos, semi-alfabetizados ou despreparados para enfrentar criticamente a massa de informações que já está chegando do mundo inteiro não terá como ser um povo livre, criativo e com personalidade própria. Será sempre um consumidor de software produzido em outros lugares e uma mão-de-obra reserva, para ser ativada quando (e se) for necessária. Ora, como formar cidadãos brasileiros no mundo que aí está com o ensino brasileiro na condição em que se encontra?
Nossa única chance é ousar. Interromper durante um semestre, ou mesmo um ano, os cursos de graduação e pós-graduação de todas as faculdades do país nas áreas ligadas ao ensino fundamental e organizar, sob a orientação do Ministério da Educação, um curso enérgico de capacitação de todos os professores do ensino fundamental.
Professores universitários e muitos de seus alunos, devidamente credenciados para esse fim, se deslocariam para cidades que funcionariam como centros de ensino. O país ficaria de pernas para o ar durante um ano, ao fim do qual teríamos um quadro docente bem mais capacitado. É claro que o programa teria que ser permanente, exigindo acompanhamento cuidadoso, formação de bibliotecas para alunos e professores, uma política coerente de salários e benefícios e por aí afora.
Mais do que alinhavar uma proposta, gostaria de estimular os que se sintam responsáveis pelo país a pôr para funcionar seu espírito de aventura. Não podemos mais perder o bonde da história. Se não nos sobrar ousadia, não passaremos de reles limpa-trilhos de um comboio que nos deixou para trás.

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