São Paulo, sexta-feira, 19 de dezembro de 1997
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A megavideo gravidez da mãe solteira rica

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Jean-Luc Godard, talvez a mais apurada sensibilidade artística do nosso tempo, declarou em certa ocasião (embora nunca tivesse tido filho) que toda mãe é uma vedete. Toda mãe exibiria aos outros, ou para si mesma, o rebento nascido de seu ventre, que é a razão de ser do narciso da vedete e de sua criação máxima, a qual desperta inveja em não poucos homens.
Assim como existe cinema tagarela, existe filho ou filha star já no útero. O filho polaroid. O filho antevisto pela mãe na Internet. Neste século, todos somos filhos da mídia.
Mulher supermidiática da cultura de massa contemporânea, Xuxa faz questão absoluta de deixar claro que ela será, daqui a alguns meses, mãe solteira, rica, independente e livre em relação ao pai da criança.
Os homens ainda não aprenderam a entrar no corpo real da mulher. Não é à toa que a psicanálise começou por aí: a mulher histérica quer um homem que saiba fazer amor.
Os apresentadores de TV Faustão e Gugu Liberato, os principais responsáveis pela paidéia sentimental brasileira, disputam a tapa a audiência da notícia: filha ou filho da Xuxa?
Nem mesmo o nascimento de Jesus Cristo, o primeiro "mass media" da história, teve tamanha cobertura quanto esta badalada gestação. Quem sabe do útero da Xuxa não sairá um novo Buda? Não nos esqueçamos de que sua bem-sucedida carreira foi feita em programa de auditório, por meio da sedução dos baixinhos. Assim, pedagogicamente falando, ela nem precisou ser mãe para seduzir os curumins videopatas.
A lúdica argentária da Xuxa diverte a garotada muito mais do que qualquer mãe e dona-de-casa, assim como exerce enorme fascínio no idiota do pai de família. Dir-se-ia então que ela é a mediação afetiva entre o pai, a mãe e o padre.
A igreja vai pouco a pouco perdendo terreno e influência diante da ascensão espiritual dos programas de auditório. À semelhança da estética tropicália, o circus Xuxa contribuiu para solapar a escola pública. Que professora primária seria capaz de competir com a palhaça das crianças?
Nenhuma mulher na sociedade falou tanto e diariamente às donas-de-casa. Eis a questão fundamental: falou a favor ou contra? Ela sacaneou a coitada da mãe de família, projetando-a na ilusão da fartura em meio à pobreza generalizada, como se fosse possível, na brincadeira com as crianças, a prostituição feliz para todas as futuras mulheres.
No final da década de 80, o público de TV estava plenamente convencido de que a ínvia Xuxa, com o seu visual de fruta importada, era a legítima patroa do presidente Fernando Collor, o que não deixa de chamar atenção para as semelhanças semiológicas entre ambos.
Destarte, muitas mulheres em 1989 sonhavam que estavam na cama com o pop Collor. Decerto o ex-presidente não é exemplo de imago paterna, mas acontece que a Xuxa também torna o pai dispensável e secundário: não existe pai bom. Afinal, como queriam os filósofos malucos da Escola de Frankfurt, a TV surgiu culturalmente para matar o pai: bye, bye, superego paterno!
A progressiva volatização do pai na sociedade contemporânea altera a própria estrutura do Édipo de carne e osso, substituindo-o por um Edipovideo. A qualquer momento poderá surgir por aí um pai, iupi e pragmático, dizendo que os filhos não viram o programa da Xuxa e, por isso, se deram mal no mercado niuliberal.
Curiosamente, do ponto de vista sociológico, neste ocaso do milênio, em que os interesses econômicos dos países ricos almejam esterilizar as mulheres pobres (1.600 crianças morrem de fome por dia no Brasil), convertendo a população num bando de avoengos e aposentados estropiados, eis que a serelepe da Xuxa vem a público esnobar, com inegável carinho mercadológico, a videogravidez de uma criança mimada, saudável e famosa.
Se ela porventura matricular a querida filha no Cieps, e não lhe conceder o direito de assistir aos programas infantis de auditório, aí sim justificar-se-ia o apodo da maior mãezona do planeta. Mãezona antiestatizante, globalizada, competitiva.
Não é à toa a referência aqui aos Cieps, contracenando ideologicamente com o cabaré televisivo das crianças, porque Darcy Ribeiro (mulher que nem Fellini?) foi preterido como educador e político, ou seja: o que vingou não foi a escola pública integral, mas sim o privado lupanar de auditório que deixou a meninada sem instrução.
O antropólogo Darcy Ribeiro dizia para os amigos: Brizolão ou Xuxa, that's the question. E Darcy, como todo mundo sabe, estava fisicamente impossibilitado de ter filhos, o que para ele não significou no entanto nenhum transtorno: um bom político que se preza, principalmente no Brasil, deveria gostar menos de seus filhos do que dos filhos do povo.
Antiescola por formação e exercício profissional, Xuxa é a mãe coruja por antecipação biônica, que fatalmente deixará para sua prole uma bela e forrada herança, ao contrário do que sucedeu, antes do advento da televisão, com Machado de Assis e dona Carolina.

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